domingo, 5 de agosto de 2012

ENFIM...



Juliana silencia e dona Ornella olha para todos. Gabriel está com a mão tapando a boca e com os olhos vermelhos, arregalados. Ivette segura a cabeça e o rosto entre as mãos, com os dedos estendidos, como se quiszesse tapar os ouvidos e não ouvir mais nada. André está de cabeça baixa, calado. Diante do constrangimento reinante, a boa senhora arremata:
_Bom, é isso!... Acabou!... Espero que tenham gostado!...
Nenhum dos presentes se predispõe a responder. Por seu turno, Juliana olha de um lado para o outro, sem entender toda aquela comoção. Em seguida, abre um lindo e estusiasmado sorriso e dispara:
_Ah! Eu amei!...

TESTEMUNHO


Um ano após nossa vitória, grande romaria se fez à Somlyó. Székelys de todos os cantos de nosso país vieram assistir à missa em agradecimento à Virgem. Uma imagem Dela com o Menino _que pareciam tão sofridos quanto nosso povo _foi levada a um singelo santuário de madeira, erguido no meio do campo onde ocorreu a batalha. Uma pequena feira se formou para atender à toda gente. Bandeiras, fitas e flores enfeitavam as carroças dos peregrinos. Crianças fofas e lindas mostravam que nossa raça sobrevivia. 
Passei os quatro anos seguintes morando com Mihail em nosso castelo. Não tive de me preocupar mais com Greta, pois esta foi viver em Kolozsvár, junto com os filhos, tão logo a paz se fez. Porém, nem tudo era bem-aventurança. Era estranho esconder minha condição e viver como uma espécie de doente, tendo hábitos diferentes como jamais sair ao sol brilhante, beber leite de cabra não fervido e, vez por outra, sair à noite para caçar salteadores na estrada, ou para encontrar os ciganos. Dizia a Mihail simplesmente que ia cavalgar. Ele compreendia e não se opunha. O povo porém comentava sobre as saídas noturnas da estranha irmã do marquês de Somlyó. E muitos repetiam "_Ela é vampira!" e outros confirmavam "_Sim, ela é vampira!".
Neste meio tempo _enquanto me debatia com estes pequenos dilemas domésticos _János Sigismond abdicou ao trono da Hungria, a que tinha direito, deixando-o para os Habsburgos, e formalizou-se como príncipe da Transilvânia. Porém, perdeu seu título pouco depois, quando István Báthory foi eleito pelos representantes da maioria das casas. Um ano depois, Sigismond tombava morto. Alguns disseram que foi de desgosto e melancolia. Eu, porém, aprendi o suficiente com Oanna para reconhecer todos os tipos de crimes cometidos com o uso de venenos. 
Em 72, quando a doença condenou meu já idoso frei Emil, revelei-lhe minha condição. Tanto para ele, quanto para Andrei, que ao lado de seu companheiro estava sentado, pegando sua mão, sem conseguir conter sua dor. Deitado à cama, frei Emil simplesmente acariciou meu rosto e disse:
_Isso não importa, minha menina. Amo e sempre amarei você do mesmo jeito...
Minhas lágrimas rolaram grossas. Ele fez-me prometer que também revelaria tudo à minhas irmãs. Após seu enterro, em uma nublada manhã de outono, no cemitério da abadia franciscana, parti imediatamente para Kolozsvár. Minhas irmãs ficaram um tanto assustadas. Vladia um tanto desconcertada. Mas me aceitaram. Vladia aproveitou o ensejo para me convidar novamente:
_Irina, venha morar conosco. Juliu casou-se há um ano. Sarka mês passado. Apenas Lisia está comigo agora. Há espaço demais sobrando nesta imensa casa! Mesmo com Mila e as criadas, me sinto só aqui.
Ri-me quando ela disse isso. Mila riu também. Vladia continuou:
_Poderá levar uma vida quase normal. Você é linda! Com certeza terá muitos clientes, que suprirão toda sua necessidade de... sperma!... _e riu-se quando pronunciou esta palavra que lhe era desconhecida. Em seguida prosseguiu. _Se tudo o que disse for verdade, terei a casa lotada todas as noites. Seremos mais ricas que nunca! Venha! Prometo mandar a cozinheira fazer comida sem alho para você.
Não pude deixar de rir novamente quando ela disse isso. Aceitei finalmente seu convite e, de fato, consegui lotar a casa todas as noites. Minha fama em Kolozsvár era absoluta! Choviam presentes e pedidos de casamento. Passamos a levar uma vida de princesas, tão ricas nos tornamos. Atendendo ao conselho de Vladia, guardei o grosso de minha fortuna em um banco. Notei neste momento que uma nova ordem se formava no mundo: a dos capitalistas. Como não notara antes!... Não era de admirar quantas pessoas mais tornavam-se infiéis a cada dia. O protestantismo, em especial o de Calvino, passou a ser a fé deles, mercadores e banqueiros. E estes cresciam como mato nas cidades. Apenas para mostrar que o mundo dos guerreiros, como os székelys, se exauria.
Tal fato porém não me incomodava, desde que visse o sorriso de Lisia. Como ela estava ficando linda! Olhar para ela era praticamente olhar para mim, uns doze anos antes. E ela me adorava. Fazia questão de imitar-me o jeito e até as roupas. Graças à Vladia, consegui ter, no tempo em que residi em Kolozsvár, uma vida familiar. Mas como acontecera no castelo, com Mihail, minhas alegrias ao lado de minhas irmãs não demorou muito tempo.
Um incidente mostrou definitivamente a fragilidade de minha condição. Fomos convidadas a assistir ao casamento de Erzsébet, sobrinha infiel do príncipe István. Após a cerimônia, a jovem noiva se aproximou de mim e investigou, cheia de interesse:
_Então você é a famosa Irina, de que tanto falam!
Não lhe respondi, apenas a fitei com o semblante fechado, mostrando meu desconforto com sua impertinência. Ela prosseguiu em um tom que achei soberbo e algo perverso:
_Meu Deus! Então é verdade! Você é linda! Parece mesmo ter a minha idade e não os vinte e sete anos que lhe atribuem. 
Tocando e acariciando meu rosto, indagou:
_Toda esta beleza e juventude vêm... do sangue?...
A fitei com força. Seus olhos miravam os meus com a ansiedade dos lobos famintos. Para não ter de lhe responder, afastei-me:
_Com sua licença!
Deixei o palacete de Vladia quando retornamos à Kolozsvár. Expliquei-lhe que já estava ficando difícil esconder que eu não envelhecia. Baixando os olhos de tristeza, ela aceitou meu argumento. Mais difícil foi explicar à Lisia minha partida. Disseram que eu iria estudar na Rússia. No dia da partida, abraçou-me com força, chorando, sem querer me largar. Depois, correu gritando para o quarto. Vertendo lágrimas, com o coração esquartejado, despedi-me de Vladia e Mila.
Tomei então o coche rumo à Brasov. Tive de aceitar o fato de que estava condenada a morar com Oanna. Quando cheguei em seu castelo, ela me recebeu com um sorriso sínico e vitorioso nos lábios. Apesar de voltar à rotina normal, passei a fugir de vez em quando, refugiando-me na caverna de Calidora para refletir. Esta então apresentou-se-me vazia, sem os pertences de minha "irmã", que foram levados pelos ciganos. Devo admitir que a caverna nua estimulou mais ainda minha meditação. E foi por conta do hábito de vir aqui que comecei a escrever estas memórias.
Hoje, concluo aqui meu testemunho. Ao longo de um ano e meio, tenho relatado, com toda a exatidão possível que minha memória permite e com o zelo dos ascetas, tudo o que se passou comigo e com minha casa. Não tenho nenhum temor quando estou aqui, nenhuma preocupação. Nem a possibilidade de reencontrar Traian me intimida. Este, por sinal, desapareceu. Assim como Florin e Ioan, de quem nunca mais tive notícias, mesmo no reino dos mortos. Traian deve estar no fundo de alguma caverna, hibernando, como disse Oanna, se refugiando no tempo. De qualquer forma, isto não me importa. Saturno também é meu senhor. Tenho a eternidade para enfrentá-lo, o infinito tempo para viver... ou penar!... Aqui portanto fico!

Irina de Somlyó, 07 de janeiro, do ano da Graça de 1577.

PAZ


É evidente que a exultante alegria da vitória, logo foi substituída pela dor da perda. Marton e seus filho, Miklos, nos deixaram, assim como o corajoso Boldizsár, o aldeão que se ofereceu, junto com outros companheiros, para reforçar nossas tropas. Vênus sabe o quanto eles foram fundamentais para nossa vitória! Seu funeral foi singelo, ao som da duda, porém digno dos melhores guerreiros. Triste foi ver as viúvas e crianças chorando. Uma faca cortou meu coração, ao ver Maryann chorando, inconsolável, se debruçando e agarrando ao corpo do pai. Afastei-me, não suportei! Lembrei-me de papai... Em minha mente, uma única frase se repetia sem parar: "_Maldito Sigismond!". Para aumentar minha dor, no dia seguinte, o corpo de papai foi finalmente levado para o nosso cemitério. Frei Emil realizou nova e singela cerimônia. Mais que tranzida de dor, limitei-me a derramar lágrimas e pôr uma rosa sobre seu túmulo.
Passados os dias de luto, Mihail mandou fazer uma grande festa, para comemorar o primeiro mês de nossa vitória. Os franciscanos, porém, exigiram que antes da festa fosse realizada uma missa no campo onde ocorrera a batalha, em memória dos mortos. A missa foi linda! O fato de tê-la visto de longe _protegendo-me do sol, à sombra dos pinheiros _talvez a tenha tornado até mais bela. Todo o povo estava lá reunido. Os franciscanos trouxeram a imagem da Virgem com o menino Jesus _que pareciam tão sofridas quanto nosso povo _e agradeceram à ela pela vitória e pela paz que finalmente estávamos desfrutando.
De fato, Sigismond pareceu ter desistido de nos atormentar após esta batalha. Pouco a pouco, não ouvimos mais falar em nenhum embate, em qualquer lugar que fosse do país. A única informação que nos vinha, era a de que seus homens se detinham na fronteira oeste, como se quisessem nos isolar do resto da Transilvânia. Ir para Kolozsvár se tornou impossível. Isso porém, não nos incomodou. Mantínhamos nosso comércio com oriente e com os ciganos. Nos concentramos na reconstrução de nosso país.
Passei a morar com Mihail, em nosso castelo. Foi cheia de alegria que vi minha terra voltar pouco a pouco a ser o que era: linda e feliz! Só sentia dor em não poder passear por ela em uma linda manhã de sol, como fazia antigamente. Mas os dias nublados do outono me eram profundamente gratificantes quando chegavam. Durante o verão, minha felicidade eram as tertúlias noturnas que fazíamos no castelo, com os amigos. Mika se impressionou com minha nova capacidade para beber e permancer acordada e alegre. Não parecia mais aquela menina que tombava de sono durante os festejos.
O ano de 1568 começou e não tivemos nenhuma animosidade. A tranquilidade só foi quebrada quando um jovem cavaleiro chegou com uma mensagem inesperada:
_János Literati manda lhe dizer que o príncipe convocou uma reunião! Disse que ele quer propôr a paz!
_O que? Está brincando comigo, rapaz?! _irritou-se Mihail.
_Não, senhor! Eu mesmo estou espantando! Mas lhe asseguro que foi o próprio Literati quem me enviou aqui! Aqui está sua carta, com sua assinatura e selo!
Mihail abriu a carta e a leu com atenção. Em seguida balbuciou:
_Meu Deus!... Como é possível isto ser verdade?...
Era inacreditável, mas era verdade! Em dois dias, Mika partiu em viagem para Kolozsvár. Ele se hospedou na casa de Vladia e, acompanhado de János Literati, foi até Turda, onde foi realizada a solene reunião. O que Mihail me contou, em carta, sobre este momento foi o seguinte:

"_Lá chegando, encontramos vários companheiros, líderes de nossa resistência. Assim como líderes saxões do levante de 62. Os convidados esperaram pelo príncipe em uma elegante sala, até que ele apareceu... Sim, ele mesmo, em pessoa, János Sigismond Zápolya!... Calvo, porém ainda jovem, escoltado por dois guarda costas, com o semblante fechado de quem ainda não decretara paz em seu coração. A forma como pisava forte com suas longas botas e a mão o tempo todo sobre o cabo da espada, delatavam isso. Ao seu lado, um senhor de cabelos brancos, que transparecia maior serenidade: Ferenc Dávid. Por sinal, foi este quem abriu a reunião. Fez longo e eloqüente discurso sobre a liberdade de crença e deu início às discussões de foro teológico. Confesso que, nos dias que se seguiram, fugi das palestras de Giorgio Blandrata, o médico italiano que prega contra a Trindade. Estavam ele e Ferenc Dávid então apresentando sua nova igreja, que agora também é a igreja do príncipe, a Igreja Unitária. Por fim, após muitos discursos piedosos, a paz foi sancionada! Após penarmos ali do sexto ao décimo terceiro dia deste mês de janeiro, finalmente vimos e ouvimos o que queríamos: 

'Sua majestade, o nosso Senhor, de que forma ele - juntamente com seu domínio - legislou sobre o assunto de religião nas dietas anteriores, na mesma matéria agora, nesta Dieta, reafirma que em todo lugar os pregadores devem pregar o Evangelho e explicar cada um segundo a sua compreensão, e a congregação se gostar, bem. Se não, ninguém pode obrigá-los para as suas almas não sejam satisfeitas, mas devem ser autorizadas a manter um pregador cujo ensinamento eles aprovam!'

Ao ouvir a leitura deste texto, confesso que não consigo imaginar que estas palavras tenham vindo daquele homem calvo e obstinado que vi ali sentado, sempre com a mão sobre o cabo da espada. Antes sim, creio que elas tenham vindo não apenas da boca, mas do coração de Ferenc Dávid, que foi quem o leu. No mais, quero dizer que em breve estarei de volta, para abraçar minha Maryann e meus filhos e para contar a você, minha linda e corajosa Irina, como tudo se passou, com mais detalhes."

De fato, quando Mika voltou, passamos muitos dias conversando sobre este evento. Nunca pensei, em minha consciência, desde que vim ao mundo, que se pudesse fazer paz entre diferentes crenças. A própria Bíblia conta sobre como Jeú e seus soldados passaram todos os sacerdotes de Baal no fio da espada.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

TEMPESTADE


Santuário em Csiksomlyó (antiga Somlyó), no local onde os székelys venceram as tropas de János Sigismond, no dia de Pentecostes de 1567.


Ao amanhacer, nossos homens tiveram de limpar a frente do castelo com panos protegendo-lhes as narinas, pois o odor dos corpos era de uma podridão indescritível. Mesmo aqueles que estavam calcinados até os ossos, exalavam um fartum ácido, que parecia vir do próprio inferno. Aquele foi um sábado que começou cheirando à morte! Todos os corpos foram enterrados em uma grande vala e encobertos com cal.
Embora o sol da primavera estivesse forte aquela manhã, permaneci fora, ao lado de Mika e dos homens. Protegi-me sob uma capa, mantendo o rosto sempre debaixo do capuz, para que a claridade não me incomodasse tanto. O calor ruborizou minhas mãos, mas apenas Mika notou isso.
Enquanto limpavam a praça de combate da noite anterior, um jovem cavaleiro székely chegou a cavalo, a todo galope. Sem fazer rodeios, anunciou:
_Preparem as tropas, o exército do príncipe está a caminho! São muitos homens! Já estão a menos de um dia de viagem daqui! _anuncia o ofegante rapaz.
Mal terminou de ouví-lo, Mika não pensou duas vezes, determinou:
_As mulheres e as crianças devem permanecer no mosteiro! Deixaremos alguns homens lá. Todas as mulheres que forem mais graúdas em tamanho devem permanecer armadas, de guarda nas janelas. Se os soldados do príncipe entrarem, a ordem é que os ataquem com o que tiverem nas mãos, com dentes e unhas se for necessário. Em caso de desvantagem, não devem exitar em incendiar tudo!... Quanto a nós, devemos nos reunir no campo ao pé do morro! Parte de nosso contingente deve permanecer escondido na floresta, atrás, e só atacar após o início da batalha, como reforço! Irina, você ficará no comando desta tropa.
_Sim! _lhe respondi prontamente.
Neste momento, Marton apareceu com um pequeno exército de cerca de quarenta aldeões que vinha em fila. Mikca olhou para a tropa com surpresa e Marton lhe explicou:
_Eles querem lutar.
Antes que Mika respondesse o que quer que fosse, um dos aldeões, magro e de músculos rijos, como um bode, se adiantou:
_Senhor, nos deixe lutar! Seu exército precisa de reforços. Somos fortes e temos nossos facões e foices como armas.
_Mas e suas famílias? _questionou Mika.
_Tenho duas filhas em idade de casar e não quero vê-las estupradas pelos infiéis. _explicou o aldeão. _Por isso, senhor, lhe suplico!...
Sentindo firmeza em seu pedido, Mika assentiu com a cabeça. Voltou-se então para Marton e disse:
_Ainda sobraram alguns mosquetes, dê a eles!
Marton assentiu e Mika voltou-se para mim:
_Irina, você fica com eles na floresta.
Assenti com a cabeça. Porém, ao ouvirem meu nome, alguns aldeões se sobressaltaram, olhando para mim com desconfiança e temor. Percebendo sua reação temerosa, o líder de músculos de bode os censurou:
_Deixem de asneiras! Preferem morrer nas mãos dos infiéis?!...Virarei um vampiro hoje, se isto for necessário para salvar minha família!...
Desconcertados, eles se baixaram o olhar. Mika, no entanto, com este incidente, teve um lampejo. Voltou-se para mim e disse-me ao ouvido.
_Pensando bem, é melhor você se disfarçar de homem. Acho que os soldados de Sigismond estão loucos para pegar você. Se eles verem uma mulher no campo de batalha, saberão que é você.
Assenti a cabeça positivamente, concordando. Ele continuou:
_Lhe arranjarei um traje, fique tranquila. Ah!... E não solte os cabelos.
Ri levemente em resposta, com o último conselho.
Neste momento, inusitadamente, frei Emil surgiu com o abade, frei György, mais dois noviços. Estavam todos paramentados para a missa e carregavam o cálice e o cibório, ambos devidamente cobertos pelos sanguíneos. Vendo que não me assustava, os aldeões pareceram se acalmar.
A pequena comitiva eclesiástica parou diante dos soldados e estes, percebendo que iria se realizar um evento religioso, se ajoelharam prontamente, sem que fosse preciso o abade pedir. Apenas eu permaneci de pé. Olhei então para frei Emil por um instante e me retirei. Ele baixou o olhar em resposta, compreendendo minha atitude, porém sem aceitá-la em seu coração. Mika contou-me o que aconteceu depois.
Uma vez que todos os fiéis estavam prontos, frei György começou:
_Queridos irmãos, vim aqui apenas para lhes lembrar que hoje é o dia de Pentecostes. O dia em que o Senhor enviou seu Espírito aos apóstolos e estes realizaram grandes prodígios. Peço então ao Espírito de Deus que vos ilumine e conceda poder para lutar contra nosso obstinado inimigo, assim como concedeu força sobre humana a Sansão e destreza a Davi, quando este teve de lutar contra Golias. Quero agora que peçam perdão por seus pecados em seu coração...
Os homens baixaram a cabeça e, de joelhos, balbuciaram seu pedido de perdão, ou simplesmente o fizeram em seus corações. Frei György então concluiu:
_Senhor Deus, peço que nos conceda força e perseverança neste momento tão crucial e que nossa Santa Mãe interceda por nós em nome de teu Filho, in nomine patris, et filii, et espiritus sancti. Amen!
Todos fizeram o sinal da cruz em resposta. Uma fila então se fez em frente a frei György e este deu início à comunhão.
Enquanto a cerimônia seguia, experimentava as roupas que Nándor me emprestara. Apenas a camisa me serviu, as calças ficaram muito apertadas, por conta de meus quadris mais largos. Nándor era alto, mas um tanto magro. Mais uma vez acabei ficando à moda dos dácios. Só que desta vez, tive o cuidado de improvisar uma calça curta por debaixo da camisa. A confeccionei recortando a parte dos quadris de uma velha calça do rechonchudo Szabolcs. Ela me cobria somente a partir do alto da dobra das coxas, deixando os movimentos de minhas pernas livres e protegendo minhas vergonhas, ao mesmo tempo. Pus então a capa, baixei o capuz e voltei para o meio dos homens.
Mal o piedoso evento teve fim, nosso olheiro aparece a todo galope:
_Preparem-se, eles estão vindo!...
Já montada em Agathon, surgi entre meus homens e os chamei:
_Vamos! Para a floresta!
Eles obedeceram sem pestanejar. E diria mesmo que me seguiriam até o inferno, tanto que olhavam para as minhas pernas. Nos escondemos à sombra dos pinheiros. Pedi a Dionísio, em meu coração, que a sombra nos ocultasse o suficiênte. Roguei também à Mãe Vênus que me concedesse um céu sombrio, para que eu também pudesse lutar. Os homens de Mika se organizaram no campo. Estavam prontos para matar e morrer. Haviam enfrentado demônios na noite anterior, por isso não temiam mais nada!
Em meu canto, montei em Agathon e preparei-me. Meu príncipe árabe relinchava, já excitado para sair a galope. Mas eu o continha:
_Calma, meu príncipe, calma!... _sussurrava em seu ouvido, acariciando seu rosto e penteando sua crina com os dedos.
Vi o imenso exército de Sigismond surgir no horizonte, como uma inundação! Estava descansado e bem armado, ao contrário do nosso. Mesmo assim, nossa infantaria aguardava o inimigo de mosquete em riste, disposta a matar, ou morrer!... Gritando furiosa, a infantaria do príncipe subiu em direção aos székelys. Nossos homens esperaram até que se aproximassem o suficiente. Quando puderam olhar nos olhos do inimigo, dispararam a primeira leva de tiros. Os primeiros corpos caíram sem vida, rolando morro abaixo.
Enquanto nossa ala de frente recarregava seus rifles, a segunda já se erguia e disparava. Os soldados do príncipe, no entanto, eram como o fogo, avançando morro acima como se a grama e a terra os alimentasse. Nossos primeiros mortos caíram em meio a disparos, manchando o verde da grama com o vermelho de seu sangue. Uma sucessão de disparos se seguiu, com corpos tombando de ambos os lados, feridos, ou mortos. A infantaria do príncipe parecia brotar do chão. Quando não convinha mais gastar munição e o choque entre as tropas mostrou-se inevitável, as espadas foram desembainhadas. Os homens se engalfinharam!... Ouviu-se gritos e ranger de dentes!
A cavalaria de Sigismond então aproveitou para mostrar sua força. A todo galope, subiu e se lançou contra nossa infantaria. Já preparado, Mihail deu ordem a nossos cavaleiros:
_Atacar!
Gritando, nossos cavaleiros desceram sobre o inimigo como vespas! A confusão mortífera da batalha se fez presente. Meus homens já se impacientavam para entrar em combate.
_Senhora, deixe-nos ir! _suplicava o aldeão líder.
Eu simplesmente lhe respondia:
_Calma! Se entrarmos muito adiantados, atrapalharemos os homens de Mihail!
Isto era um fato, mas meu coração agonizava por não ver uma única sombra encobrir o sol. Na batalha, não conseguiria me encobrir o tempo todo com a capa. No campo, para meu desespero, os homens de Mika começavam a cair em desvantagem, frente ao grande número de soldados inimigos. Neste momento crucial, Vênus me concedeu sua graça!... Nuvens sombrias carregadas surgiram e um céu escuro e tempestuoso se formou. Dei um beijo no rosto de Agathon e lhe sussurrei no ouvido:
_Vamos lá, meu menino, é hora de entrarmos na festa!...
Com um grito, dei ordem para meu exército partir:
_Atacar!
Meu belo príncipe partiu a todo galope, meus homens nos seguiram, gritando furiosos! Surgimos da floresta como assombrações. Como que desobedecendo o conselho de Mika, com a velocidade do galope, meu capuz descobriu minha cabeça. Sentindo o vento tempestuoso em meus cabelos, desembainhei minha espada. Como uma tempestade, meu exército adentrou na batalha. Os soldados de Sigismond se assustaram com nossa chegada. Seus capitães arregalaram os olhos! Como vampiros famintos de sangue e carne, meus guerreiros começaram a matar. Vendo-os cair sem medo sobre os soldados do príncipe, lembrei-me mesmo dos lobos, durante os ataques às tropas de reforço.
Por meu turno, com minha espada, rasguei o rosto do primeiro incauto. O segundo recebeu uma estocada entre as costelas, no lado esquerdo. O terceiro teve a garganta aberta. O quarto veio a todo galope, por trás, pronto para descer sua espada e me partir a cabeça ao meio. Mas senti sua chegada e puxei minha adaga direita, que cravou-se em seu coração. Sem pestanejar, tomei minha pistola, voltei-me para frente, e estourei os miolos do cavaleiro que já se lançava à dez pés de distância. Guardei então a pistola e chamei de volta minha adaga, que derrubou o corpo do cavaleiro ao se desencravar de seu peito.
Não demorou para que o espaço à minha volta se abrisse. Pois o que o inimigo via à sua frente era uma assustadora vampira ruiva, com os olhos mais vermelhos que os próprios cabelos e as presas prontas para se banhar em sangue. Não pude evitar, quando enfurecida, minha natureza feroz se mostra. Para a infelicidade de Mika, não dava para esconder quem eu era. Eu era a odiada e aterradora Irina, o flagelo do exército de János Sigismond!...
Como balas caindo do céu, senti os pingos de água me acertarem direto na cabeça e nas costas. A tempestade finalmente desabou!... O mundo rugia! O sangue escorria sobre o chão como se fosse um rio. Durante um tempo que pareceu interminável, a fúria da guerra se fez presente. Os homens se batiam, fosse de pé, fosse deitados. Lembrei-me das almas danadas, que se contorciam no rio do inferno, na Comédia de Dante. Foi quando percebi que a batalha "escorria" morro abaixo. "_Não acredito!... Eles estão recuando!...", pensei comigo.
 E de fato, tão logo a chuva abrandou, ouvimos os gritos do comandante inimigo:
_Recuar! Recuar!...
Era inacreditável!... O imenso exército de Sigismond batia em retirada! Reduzido que estava a poucos sobreviventes, que agora fugiam assustados. Aos gritos, nossos homens festejaram. Ensopada dos pés à cabeça, suja de sangue e lama, também ergui a espada... e gritei!...

sábado, 21 de julho de 2012

BENÇÃO


 
Enquanto frei Emil e Andrei acordavam os criados, corri para o castelo. Em minha mente, chamava por Mihail.
_Mika, acorde! Acorde! Mika!
Sentindo meu desespero e entendo, mesmo sem palavras, a razão de minha aflição, ele despertou. Ao seu lado, Mayann também despertou assustada.
_O que foi, Mika?
Ele simplesmente pulou da cama e respondeu sem rodeios:
_Vamos ser atacados! Leve as crianças para o mosteiro e fique lá! Rápido!...
Em pouco tempo, todos estavam acordados. As mulheres corriam para o mosteiro, levando as crianças. Os homens armavam os canhões e carregavam os mosquetes no castelo. Pedi então a frei Emil:
_Diga ao abade para ficar de vigílha, rezando o terço! Diga para rogarem para a Virgem Maria por proteção! Dê ordem para que ninguém deixe a igreja, por nada neste mundo!...
_S-sim... _respondeu ele atordoado.
Tão logo ele cumpriu minhas ordens, o puxei pelo pulso e determinei:
_O senhor ficará comigo, no castelo! Deixe Andrei conduzindo a oração com as mulheres! Venha!
Fomos então nos juntar a Mika, Marton e os demais homens. Para meu horror, mal o povo se reunira na igreja e os soldados se puseram a postos, um estranho vento surgiu da floresta e gelou a todos. Os soldados se assustaram. Olhei para a escuridão, entre as árvores, e pude divisar pontos vermelhos como fagulhas se aproximando. Traian e seu exército estavam vindo.
Não demorou para que sua imagem terrível aparecesse, montados em cavalos com as órbitas dos olhos reviradas, sinal de que estavam possessos. Ao ver vampiros tomando a frente do castelo, muitos homens que se encontravam nas janelas e no sacada, se acovardaram e correram para dentro, aos gritos. Desesperado, Mika pediu-me socorro:
_Irina!... O vamos fazer?!... São vampiros!...
_Calma! Frei Emil, venha aqui!
Enquanto meu assustado frei se aproximava tremendo de horror, os mais corajosos de nossos homens já atiravam das janelas. Dois tiros de canhão foram desparados, espedaçando alguns demônios lá embaixo. A maioria porém, já subia pela muralha sem usar cordas ou escadas, sinal de que conheciam bem seus poderes. Montado em seu cavalo, com um pálido e horrível semblante _que trazia olhos vermelhos injetados, por ter bebido muito sangue! _Traian vociferava:
_Subam! Tomem o castelo! Há muito sangue para vocês!... Subam demônios!...
Infelizmente os primeiros soldados de Traian alcançaram nossos soldados das janelas e da sacada, puxando-os e jogando-os para baixo. Estes não caiam ao chão, mas nas mãos e presas famintas dos soldados vampiros, que mordiam seus membros e pescoços sem piedade. Os pobres homens gritavam de dor e horror. Mais que depressa, Mika ordenou aos outros:
_Vamos! É sua vez! Atirem nos vampiros! Atirem também nos que caem! Não os deixem ser amaldiçoados! Vamos! Não se acovardem!...
Sem alternativa, os homens corriam e começavam a atirar. Muitos preferiam usar bestas, pois eram mais rápidas para serem armadas. Marton e seus filhos usavam o arco e a flecha, uma vez que eram exímios nessa arte. Mais tiros de canhão também foram disparados. Percebendo as perdas devido às armas, Traian ordenou:
_Atirem!
Seus horríveis soldados, montados ou não, começaram então a atirar com mosquetes e bestas. Muitos de nossos homens _pelo menos sete _cairam alvejados. Miklos, filho de Marton, gritou ao ser atingido por uma seta no braço direito:
_Aaah!...
Enquanto os homens se empenhavam ao máximo de sua força e coragem, eu preparava meu ataque secreto com frei Emil. Mandei alguns homens trazerem imensos caldeirões cheios d'água. Em seguida, roguei ao meu eclesiástico amigo:
_Abençoe-a! Vamos! É nossa única chance!
Cheio de horror, fechando o rosto entre as mãos, ele fraquejou:
_Não posso, sou um miserável pecador!... O inferno veio me buscar!...
_Deixe de asneiras! Coragem! Uma vez o senhor me disse que é mero instrumento nas mãos de Deus! Agora vamos! O senhor ainda tem sua fé!...
Tremendo, pranteando, ele engoliu sua agonia com um grande e seco soluço, fechou os olhos, estendeu as mãos e começou:

_Exorcizo te, creatura aquæ, in nomine Dei Patris omnipotentis, et in nomine Jesu Christi, Filii ejus Domini nostri, et in virtute Spiritus Sancti: ut fias aqua exorcizata ad effugandam omnem potestatem inimici, et ipsum inimicum eradicare et explantare valeas cum angelis suis apostaticis, per virtutem ejusdem Domini nostri Jesu Christ: qui venturus est judicare vivos et mortuos et sæculum per ignem
Deus, qui ad salutem humani generis maxima quæque sacramenta in aquarum substantia condidisti: adesto propitius invocationibus nostris, et elemento huic, multimodis purificationibus præparato, virtutem tuæ benedictionis infunde; ut creatura tua, mysteriis tuis serviens, ad abigendos dæmones morbosque pellendos divinæ gratiæ sumat effectum; ut quidquid in domibus vel in locis fidelium hæc unda resperserit careat omni immunditia, liberetur a noxa. Non illic resideat spiritus pestilens, non aura corrumpens: discedant omnes insidiæ latentis inimici; et si quid est quod aut incolumitati habitantium invidet aut quieti, aspersione hujus aquæ effugiat: ut salubritas, per invocationem sancti tui nominis expetita, ab omnibus sit impugnationibus defensa. Per Dominum, amen.

Quando terminou, beijei-lhe o rosto e logo em seguida ordenei:
_Joguem sobre os vampiros! 
Os homens obedeceram prontamente. Com dificuldade, mas com convicção, levaram os caldeirões até a muralha e despejaram a água gritando:
_Água!!!...
Mal a água tocou os vampiros, seus corpos soltaram vapores como se estivem sendo escaldados. Caindo muralha abaixo, soltavam gritos horríveis, inumanos. Mal os primeiros caldeirões foram esvaziados, a segunda leva já ia sendo conduzida para cozinhar mais demônios. Frei Emil continuava comigo, agora benzendo as armas, as balas e as flexas de soldados que estavam ajoelhados, recebendo benção e pedindo perdão de seus pecados. Alguns rezavam o Ato de Contrição.
A esta altura, alguns vampiros já adentravam à sacada. Mas eram imediatamente alvejados por setas, balas e espadas abençoadas, que queimavam ao tocá-los. Com gritos pavorosos, soltando fumaça de seus ferimentos, eles morriam. Juntando-me aos homens, saciei minha fúria, degolando de imediato dois desgraçados. Quando todos eles jaziam já sem vida ao chão, fui até a sacada. A quantidade de vampiros ainda era imensa. Havia ali perto cem demônios!
Pensando rápido, ordenei aos homens:
_Tragam azeite!
Odres de azeite foram trazidos o mais rápido possível. Frei Emil abençoou o azeite e, seguindo minhas ordens, os homens besuntaram o corrimão da sacada e as beiçadas das janelas. Isso isolou a entrada dos vampiros de Traian, cujas mãos queimavam ao ponto de soltar a pele das palmas, tão logo tocavam no azeite. Em vista disso, não demorou para que os demônios trouxessem um tronco de pinhero e começassem a usá-lo como aríete, tentando arrombar o portão principal. Ciênte de que eles entrariam cedo ou tarde, arrisquei minha última tentativa: mandei preparar setas incendiárias e pedi a frei Emil: 
_Abençoe o fogo! 
Meu bom amigo o fez sem pestanejar. O resultado foi surpreendente! Tão logo as setas atingiam os demônios, estes se incendiavam por inteiro e, se tocassem em mais outro, este também se incendiava. A condição demoníaca era seu combustível! Sendo assim, uma sucessão de explosões incendiou a quase totalidade do exército de Traian, tão logo uma saraivada de setas abençoadas os atingiu. As explosões foram tão assustadoras, que nossos homens protegeram o rosto, com medo de serem eles próprios incendiados.
Traian gritava sem parar, ordenando para que seus pouquíssimos guerreiros restantes recuassem. De repente, uma seta acertou sua coxa. Infelizmente, ela não era incendiária. Porém, seu ferimento ferveu!... Soltando um grito demoníco, ele retirou a seta da perna. Sua luva e sua mão queimaram, como se a haste fosse ferro em brasa. Cheio de ódio, vociferou:
_Prostituta!!!
Em seguida, tocou o cavalo floresta adentro.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

PERIGO




Pensar que a noite seria tranquila foi um terrível engano. Horas já haviam se passado do enterro de Nicolae e a madrugada deitava suas horas misteriosas quando, no reino dos mortos, recebi uma mensagem inesperada. Vagava novamente próxima ao salgueiro onde Oanna me levara, quando uma voz conhecida me chamou:
_Irina... Irina!...
Voltei-me para trás e vi, para minha total estupefação, Mircea e Ciprian, escondidos dentro do tronco do salgueiro. Suas fisionomias estavam mudadas, mostrando-se sadia, normal, apesar dos sembalntes preocupados. Fui até eles e recebi de imediato a primeira má notícia:
_Irina, perdoe-nos por desapontá-la, mas estamos mortos. _revelou Ciprian.
_Como?!... _Indaguei atordoada.
Mircea respondeu:
_Traian! Traian, Irina! Seu exército nos matou...
_Sim. _completou Ciprian. _Lutamos o quanto podemos, até despachamos seis dos deles, mas eles nos pegaram... Veja!...
Imediatamente visualizei a emboscada em que meus amigos cairam, a meio caminho de Somlyó, quando os enviei. Tenebrosos soldados vampiros _todos montados _dos quais eu só conseguia divisar a terrível silhueta, as presas e os injetados olhos vermelhos, cercaram meus companheiros. Estes brandiram suas espadas e ceifaram as vidas dos primeiros que deles se aproximaram. Mas uma seta atravessou o coração de Mircea e ele estacou. Ciprian olhou, sem acreditar, para seu companheiro alvejado. De repente, uma seta, seguida de outra e mais outra, acertaram-lhe certeiramente o peito. O sangue começou a escorrer do canto de sua boca. Outras setas se cravavam nas costas de Mircea e ele tombou sobre o cavalo, os olhos revelando esforço em continuar vivo. Ele, porém, os fechou e então espirou. Vi então uma bota suja de lama o empurrar de cima do cavalo, fazendo-o tombar no chão. Era ele... mais fantasmagórico que nunca... Traian!... Neste momento a visão se desfez.
_Onde estão Ioan e Florin? _indaguei desesperada.
_Não sabemos, não os vimos por aqui... Fomos atacados enquanto eles estavam dando água para seus cavalos. _respondeu Mircea.
Meus olhos marejaram de lágrimas e o desespero me tomou. Mircea continuou:
_Eles estão indo para Somlyó, Irina. Logo chegarão ai...
_Eles não podem entrar no castelo, nunca foram convidados! _argumentei.
Mircea me desconcertou:
_Podem sim! Traian tinha permissão de seu pai para entrar no castelo com seus homens quantas vezes quisesse. Como seu pai jamais o proibiu formalmente de entrar em sua morada ele, e qualquer exército por ele comandado, estão imunes aos anjos que guardam seu castelo.
_O que?!... _exclamei pasma. _Quem lhes disse isso?...
_Friderika nos informou. _respondeu Mircea sem pestanejar.
Meu espírito se atordoou. Calei!... Friderika era o nome da minha avó, mãe de papai. Não a conheci, pois nasci anos após seu falecimento. Ao me ver paralizada, impaciênte, Ciprian rogou:
_Acorde, Irina! Eles estão chegando! Acorde! Pelo amor de Deus!
_Acorde, Irana! Acorde! _clamou também Mircea.
Ergui-me da cama com um gemido de desespero. Frei Emil surgiu logo em seguida, me baraçando e me acariciando os cabelos:
_O que foi minha menina? Calma, foi apenas um pesadelo!...
Abracei-o com força e respondi:
_Não! Não foi um pesadelo, foi um aviso!...
_Como assim?... _indagou frei Emil sem entender.
Olhei para ele desesperada e roguei:
_Frei... acorde a todos! Leve todos para o mosteiro!...
_Para o mosteiro, mas... por que?...
_um grande perigo está vindo!
_Grande perigo? Mas... que perigo?...
Não querendo assustá-lo, nem fazer pensar que estivesse louca, simplesmente respondi:
_Os soldados do príncipe, eles estão vindo! Leve todos para o mosteiro! Rápido!...
_Ó, meu Deus!.. _exclamou ele se benzendo.
_Rápido! _exclamei já pulando da cama.

terça-feira, 17 de julho de 2012

DEGREDADOS FILHOS DE EVA



Uma vez satisfeita, joguei o corpo do conde para o lado. Com a boca e o corpo banhados de sangue, ergui-me e dei com olhos em Mihail, que assustado, se limitou a dizer:
_Acabou, Irina. Acabou...
Olhei então para o lado, para o corpo de Nicolae preso à parede. Já plena de forças, desencravei a lança e retirei-a do corpo de meu irmão. Tomei-o em meus braços e, com os olhos vertendo lágrimas, acariciei seu rosto. De olhos fechados, ele simplesmente parecia dormir sereno, como uma criança. Senti então Mihail tocar em meu ombro e deitar sua cabeça sobre a minha. Ficamos assim até outros székelys adentrarem à sala. Haviamos tomado o castelo. A que preço!...
Foi preciso Mihail intervir para que eu largasse do corpo de Nicolae. Ele e nossos companheiros começaram a carregá-lo para fora. Cheia de dor e ira, cortei a pele que ainda prendia a cabeça do conde ao corpo. Tomei uma tocha da parede, segurei a cabeça pelos cabelos _com os dentes! _e subi até o teto. Lá, do alto, com uma tocha na mão e a cabeça do conde em outra, gritei:
_Székelys!!!...
No pátio e mesmo em frente ao castelo, todos os guerreiros voltaram seu olhar para mim. Ao me verem seminua, com a cabeça do conde nas mãos, gritaram em coro! De olhos vermelhos, eu sorria como uma fera e exibia meu troféu. Por fim, atirei-o aos guerreiros. Estes se bateram para juntá-la do chão e erguê-la, gritando ao confirmar que era mesmo o bandido.
A alvorada já se insinuava e eu retornei para o interior do castelo. Mihail vestiu-me com sua camisa, ficando apenas com o casaco. Quando deixamos o castelo _que, incendiado, erguia uma imensa coluna de fumaça negra _uma fileira da cabeças empaladas enfeitava sua frente. A de conde Vladmir jazia suspensa numa estaca mais alta, em meio a de seus soldados.
Nos apressamos para retornar à Somlyó, pois sabíamos que a represália de Sigismond não tardaria. Ao meio do caminho, banhei-me no velho Olt e lavei a camisa de Mihail, que era o único traje que possuía naquele momento. Enquanto aguardava ela secar, cobri-me com uma capa que Mika arranjou. Quando finalmente pus-me pronta para a viagem, achei engraçado vestir-me daquela forma, à moda dos dácios: túnica curte e leve, cingida por uma cinta com espada, mais a capa. Todos as almas de homens dácios que encontro no reino dos mortos se vestem assim. E foi assim, trajada como um dácio, que parti para Somlyó.
Chegamos ao entardecer. Foi doloroso ver nosso castelo semidestruído. Quanta desgraça se sucedeu à minha partida!... Porém, tão logo avistei uma imagem ao longe, meu coração saltou:
_Aaaaaahhh!!! _gritei de alegria.
Saltei de Agathon e corri para abraçar frei Emil! Com os olhos cheios de lágrimas, os cabelos mais brancos e aparência sofrida ele me abraçou e chorou comigo.
_Calma, minha menina. Está tudo bem... _repetia ele me acalentando, enquanto eu soluçava em seu ombro.
A alegria de nosso reencontro só foi cortada quando o corpo de Nicolae, embrulhado em um cinzento e roto lençol de lã, foi retirado do coche que o levava. Frei Emil se aproximou dele, tocou-lhe a fronte e esclamou quase balbuciando:
_Santa Mãe...
Em seguida fechou os olhos e balbuciou uma leve oração. O corpo foi então colocado em uma pequena carroça, para ser levado para a capela, onde seria velado. Neste momento, aos berros, chega Greta, acompanhada de uma bela jovem de aspecto sofrido, que reconheci ser Maryann:
_Nicolae! Nicolae!...
Ao vê-lo morto, não se conteve e saltou sobre o corpo do marido.
_Nãããããoooo!!!... _berrou. _Aaaaaaahhhh!!!...
Maryann tentava acalentá-la, mas ela estava histérica e fugia de suas mãos, gritando descontroladamente. De repente, ergueu o olhar para mim e começou a me acusar, vociferando:
_É culpa sua! É tudo culpa sua! Sua vampira maldita! Sua prostituta incestuosa! É culpa sua!!!...
Suas palavras me feriram como facas e lágrimas de indignação verteram de meus olhos. Conhecendo meu temperamento, frei Emil se apressou em me abraçar, ao mesmo tempo me contendo e me consolando das injúrias. Temendo uma violenta briga, Maryann agarrou Greta e a foi levando para dentro. Esta continuava a berrar e a se descabelar como uma louca.
Depois deste triste episódio, frei Emil me levou para a casa paroquial, onde eu iria me acomodar, junto a ele e Andrei. Este estava um tanto magro e abatido, por conta das privações da guerra, mas me abraçou com força e amor ao reencontrá-lo. Não pude controlar as lágrimas ao revê-lo. Éramos todos pobres e sofridos pecadores, degredados filhos de Eva!
Meu quarto estava sendo ocupado por Mihail, Maryann e seus filhos, que ela me apresentou com satisfação, pouco depois de acalmar Greta:
_Este é Krisztián, meu mais velho. _disse me mostrando um fofo rapazinho de uns três anos, praticamente a cópia de Mihail quando criança.
Agachei-me _tendo cuidado de fechar um pouco as pernas, pois ainda vestia a camisa de Mihail _e abracei e beijei meu lindo sobrinho.
_Oi, Krisztián, sobrinho lindo da titia! _mimei-o.
Neste momento, Mihail aparece carregando Judit, de apenas quatro meses. Não resisti ao ver aquela coisinha fofa, que era a cara da mãe, Maryann.
_Que linda! Que fofurinha!... _exclamei já tomando-a nos braços.
Cuidadosamente, para que Greta não soubesse, Maryann me apresentou os filhos de Nicolae: Joszef, de cinco anos _que lembrava muito papai! _Ádám, de quatro _que lembrava o avô paterno, Béla _e a pequena Micheller, de dois aninhos _cópia de Vladia. A todos abracei, beijei e mimei. Depois, Maryann me emprestou um de seus vestidos, essência de sândalo para os cabelos e um frasco de perfume de rosas, para que eu usasse após o banho. Ainda caminhei e conversei bastante com ela, até quase a hora do enterro de Nicolae. Este foi velado durante três horas e depois enterrado junto ao sepulcro de minha mãe. Não acompanhei seu velório. Seu enterro vi de longe, quando a duda começou a cortar meu coração com sua melodia _enquanto o caixão de era descido à sepultura _e as tochas iluminavam a escuridão da noite.