segunda-feira, 16 de maio de 2011

STRIGOI



























Nos dias que seguiram, Calidora me contou mais de sua vida. Certa vez lhe perguntei:
_Como conseguiu sobreviver tanto por tempo? Nunca lhe caçaram? Minha primeira vítima foi um pastor. Quando o matei, seus companheiros vieram atrás de mim. Por isso me escondi no Cheile.
_Nunca mate pastores, Irina. Nem caçadores, nem lavradores, nem eremitas, nem curandeiros, nem nobres, nem ciganos... Nunca mate quem conhece o lugar em que você está. Se o fizer, os companheiros da vítima virão atrás de você e a matarão. Você foi sábia em ir para o Cheile. Minhas primeiras vítimas foram dois legionários... Você não imagina o terror de ver uma legião inteira vindo em seu encalço. Não esqueço o latido dos cães, os gritos de comando do centurião: "_Não percam a strigoi de vista!..." Era assim que eles nos chamavam, strigoi. Eu corria desesperada pela floresta. Não apenas para não ser pega, mas sobretudo para chegar a tempo ao esconderijo onde Eni e Dácio estavam. Se tivesse de morrer, que ao menos morresse ao lado deles.
_Você sempre esteve sozinha? _perguntei afagando-a novamente, pois as lágrimas voltavam ao seu rosto.
_Cheguei a viver com um grupo de amaldiçoados. Chegamos a ser mais de duas dezenas, mas não éramos muito diferentes de um bando de mendigos, ou leprosos. Roubávamos comida de nossas vítimas. Pão, sobretudo. Encontrar vinho era um luxo. Porém, apesar de todo nosso esforço em sobreviver, ninguém durava muito tempo. A maioria caiu na mão dos legionários. O problema é que atraíamos os lobos, por causa dos corpos que deixávamos abandonados após nossos ataques. Até hoje está uma forma de nós, os strigoi, ou os vampiros, como vocês da România chamam, sermos descobertos. Onde há muitos lobos, sempre há vampiros.
_Nunca havia pensado nisso! _surpreendi-me.
Calidora soltou uma breve e espasmódica risada, que me pareceu meio louca. Em seguida continuou:
_Vi muitos companheiros meus morrerem, tendo suas cabeças cortadas... seus corações arrancados. Os legionários se regozijavam quando faziam isso. Isso nos irava! _relatou cheia de revolta _Por isso, nos invernos rigorosos, quando não tínhamos o que comer, não só bebíamos o sangue, como também comíamos a carne dos legionários que pegávamos. Não tínhamos nenhuma piedade!...
Meu coração doeu e meus olhos fecharam quando ela disse isso. E eu que pensava ter sido uma besta, uma fera... As dimensões infernais da maldição eram muito piores do que eu podia imaginar. Prossegui perguntando:
_Já vi outros vampiros com roupas parecidas com as suas. São de sua época?
_Não. Se viu uma mulher alta, com uma himation de lã e uma menina de uns doze anos, a primeira é uma geração mais recente que eu, a segunda, duas.
_De fato as vi, em minha infância.
_A mulher é Ioana. Era esposa de um advogado romano. Ela é de Mitilene, chegou aqui no tempo de Antonino. Virou lâmia porque tinha o costume de trair seu marido. Um dia, teve um encontro com um estranho que a levou para a floresta. Foi ele quem a amaldiçoou.
_Ela ainda vive, conviveu com ela?
_Nunca mais a vi. Não sei para onde possa ter ido. Nunca convivi com ela, pois é difícil mesmo de falar com ela. Ela vive tomada por uma embriaguez luxuriosa, ri à toa, fala coisas sem sentido. Acho que ela nunca conseguiu sair do transe inicial.
_Compreendo. _respondi, lembrando de quando fiquei neste mesmo estado. _E a menina? _continuei.
_Drusila?!... É romana, filha de um mercador, Druso, que veio para cá no tempo do sábio Marcus Aurelius. Era molestada pelo pai e fugiu para a floresta. Foi amaldiçoada por Cornelius, um dos sobreviventes de meu grupo. Viveu com ele até os turcos o matarem, há uns quarenta anos. Também não a vi mais.
_Conhece... por acaso... quatro mulheres...
_Quem não conhece as pornai! _respondeu ela prontamente, cortando minha pergunta e minhas dúvidas _Vieram comigo de Atenas, na mesma galera. As vi trancafiadas no porão, famintas, recebendo comida pelas grades, como se fossem animais. Era assim que eu recebia comida também, antes de Galerius me libertar. Elas eram encomenda de Laio, o pornoboskós mais promissor da România naquela época. Elas conseguiram fugir do lupanar e se refugiar na floresta. Foram encontradas por Athanasius, o mais antigo e poderoso strigoi que já andou por esta terra. Foram suas servas durante séculos!
_Foram elas que me amaldiçoaram... _revelei.
Calidora olhou para mim e soltou um leve riso. Em seguida concluiu:
_Como se eu não soubesse. Quem mais produz amaldiçoados por esta região hoje em dia?

domingo, 15 de maio de 2011

LÂMIA

























Sereia, de John William Waterhouse.


No dia em que me acolheu, Calidora enxugou minhas lágrimas. No dia seguinte, em que contou-me sua história, foi minha vez de enxugar as suas.
_Meu pai era pastor, fui sua sétima filha. Tive onze irmãos, mas hoje estão todos mortos... _disse com tristeza nos olhos.
Comovida, acariciei seu rosto e suas melenas. Ela continuou:
_Quando eu tinha doze anos, meu pai me casou com um mascate que enviuvara, Adelfo. Ele era mais velho que meu pai e tinha filhos adultos, de outro casamento. Tão logo nos casamos, ele me levou para Atenas. Mal chegamos lá, ele se endividou no jogo de dados. Para pagar sua dívida, me vendeu para Epíteto, um pornoboskós. Fui parar no Pireu, como pornai. Ainda lembro de Adrasteia _a mais velha dentre as pornai _se queixando em meu primeiro dia:
_Pare de chorar, menina. Se não vai borrar a maquiagem!... _dizia tentando me maquiar.
Durante mais de dez anos atendi aos marinheiros. Não tenho queixa da maioria deles, ganhei presentes de muitos. Cheguei a ter amor. Mas era difícil aturar Epíteto... Ele era um homem cruel e mesquinho. Como só gostava dos efebos e odiava as mulheres, nos tratava mal. Muitas vezes, só me alimentei por conta da generosidade de algum cliente.
_Que bandido!... _revoltei-me.
_Uma noite _continuou ela _conheci Galerius, meu segundo marido, a quem realmente amei. Ele era centurião. Ele me comprou e me alforriou. Quando me trouxe para a România, eu estava grávida de meu menino, por isso dei a ele o nome de Dácio, porque aqui era a terra dos dácios. Quando a galera aportou e vi esta terra abençoada por Dionísio, coberta por seus pinheiros... _soluçou por um instante _tão parecida com minha Tessália... chorei de felicidade. Eu e Galerius vivemos sete anos juntos... apenas sete anos... Para mim foi uma eternidade!... _fechou então os olhos, sorrindo levemente, uma lágrima escorrendo do olho direito.
Acalentei seus cabelos e ela prosseguiu:
_Um dia, ele partiu com a legião para combater os partos. Prometeu que voltaria... mas o que recebi de volta foram apenas suas armas e sua armadura... e seu nome... na lista dos mortos. _dito isso, ela apertou os olhos e soluçou.
A abracei. Ela prosseguiu:
_Um de seus companheiros _um decano que perdera um braço _confirmou sua morte. Estava ao seu lado quando a espada de um parto o atingiu no pescoço. Ele matou o parto que o feriu. Mas logo em seguida teve o braço decepado pela espada de outro. Segundo ele, Galerius expirou chamando por meu nome...
Ela então começou chorar muito, soluçando fortemente. A abracei e ela continuou seu desabafo.
_Dácio não aceitava a morte do pai, Eni perguntava constantemente por ele... eu só respondia: Ele tá no Elísio, filha, brincando com seus ancestrais, seu vovô, sua vovó... Um dia, eu não suportei mais sua perda... e decidi morrer!... Fui com meus filhos até o lago, dei cicuta misturada com vinho e mel para eles... Tão logo eles sentiram as perninhas pesadas, cantei para eles e os pus para dormir. Quando eles adormeceram, pensei que logo morreriam. Peguei então o gládio de Galerius e apontei para o meu peito. Por um breve momento, senti que não teria coragem. Porém, uma forte mão tapou-me a boca e uma terrível dentada cravou presas de leão em meu pescoço. Sem conseguir respirar, senti a fera, ou o que quer que fosse, me erguer do solo só com sua boca. Meu sangue pingava do dedo direito até o chão. Desfaleci, morri!... Fui ter no Hades. Conversei com Hecate. Ela era linda e usava uma imaculada himation negra...
Quando ela disse isso, intervim:
_Ei!... Eu também conversei com uma mulher, quando estava no mundo dos mortos!... Mas ela usava um vestido azul!...
_Hecate pode usar todos as vestes que você puder imaginar, as mais belas!... _explicou embevecida.
Prosseguiu então:
_Eu clamei a ela para morrer, mas ela disse que a morte me estava vedada. Coré decidira cortar apenas metade da espessura de meu fio, esta seria minha punição pelo pecado de querer por fim à minha própria vida, e ainda intentar o filicídio. Apenas ela, Coré, pode decidir quem partirá, ou não. Quando despertei, corri até meus filhos, pois não os encontrei no Hades. Eles ainda respiravam!... Oh, por Vênus!... Os lobos já podiam os estar devorando!... Como minha Mãe foi boa para mim!... _e começou a soluçar e derramar lágrimas.
Abracei-a forte e  comecei a chorar também. Ela prosseguiu:
_Percebi que dera uma dose fraca demais de cicuta. Lembrei-me então que Hecate dissera... que eu seria uma lâmia pelos séculos dos séculos. Decidi então mordê-los, pois... se tivesse de viver eras e eras amaldiçoada, que fosse ao menos ao lado deles... já que não sei se um dia Coré me permitirá reencontrar meu Galerius...

sábado, 7 de maio de 2011

HIMATION



























A gruta em que Calidora morava era grande, uma verdadeira casa. Tinha camas improvisadas para ela e os filhos, um pequeno fogão feito de pedras e até um grande e belo espelho oval, apoiado sobre uma mesinha, que servia de penteadeira (havia pentes e cosméticos sobre ela). Ela me recebeu gentilmente, mas me criticou:
_Você não deve andar assim, Irina, está horrível!
_Eu sou horrível, sou uma vampira!
_Eu também sou e não estou como você! Venha, vou dar um jeito em você! Mais aqui em baixo, na gruta, há um pequeno lago, você vai tomar um banho!
Antes de descermos, ela ordenou ao filho:
_Dácio, cuide de Eni, ponha ela para dormir. Mamãe vai com Irina aqui no lago.
_Tá, mãe! _respondeu o belo rapazinho.
Calidora então me conduziou por um breve mas tortuoso caminho de pedras e me levou a um belo lago de caverna. Pontas de pedra pendiam do teto e frestas na rocha deixavam entrar raios de luz, que iluminavam o ambiênte.
_Jogue fora estes trapos! Entre na água, volto logo! _ordenou.
Tirei fora meus farrapos e entrei na água fria e esverdeada. Meu último banho fora no dia em que fugira do solar de tio István. A água parecia me acolher carinhosamente, como uma mãe. As lágrimas escorreram de meus olhos. Calidora não tardou a voltar, tranzendo uma pequena trouxa, dois frascos cristalinos _com cerca de um palmo e meio cada um, e que trazíam óleos dentro _mais um manto de lã. Ela sentou-se à beira da lagoa e abriu a trouxa. Dentro havia um pente, uma pinça de depilar, uma tesourinha e uma toalinha branca. Ordenou então:
_Mergulhe a cabeça na água!
Megulhei. Senti a água me envolver toda... Era como um renascimento, um batismo! Me ergui e água escorreu, levando sujeira e dias de dor. Mergulhei de novo e fui escorrendo meus cabelos. Folhas secas, talos de pinho e outras coisas caíam de meus cabelos. À beira do lago, Calidora agachou-se à beira do lago e chamou:
_Venha aqui!
Fui até ela e sentei, mergulhando as ancas na água, dando-lhe as costas. Ela pegou meus cabelos, os escorreu com as mãos e reclamou:
_Por Hecate, quanta sujeira!
Ela então pegou o pente e começou a limpar meus cabelos. Até pedrinhas saíam deles. Depois de um bom tempo livrando-os dos detritos ela mandou eu mergulhar novamente. Mergulhei e comecei a me sentir mais leve. Ela então abriu um dos frascos e ordenou:
_Venha mais para a margem! Fica de pé aqui!
Obedeci, ficando só com os tornozelos debaixo d'água. Ela então pôs um pouco do óleo na mão esquerda e, em seguida, passou em minhas pernas. Era azeite de oliveira. Como uma mãe, ela bezuntou todo meu corpo de azeite. Não havia malícia em seu gesto, nem em meu coração. Quando tocou em meu sexo, ela criticou:
_Você precisa se depilar, heim! Há mais mata entre suas pernas do que fora da caverna!
Simplesmente ri. Ela também criticou minhas unhas:
_Queria virar um animal selvagem, é?!... Olhe só o tamanho dessas unhas! Horríveis! Vou já aparar essas garras de harpia.
Antes de aparar minhas "garras", porém, ela me limpou. Pegou um instrumento semelhante a uma pequena foice _que ela chamava de estrígil _e começou a passar em minha pele, escorrendo azeite e sujeira. Quando acabou a operação, mandou eu mergulhar novamente. Mais um mergulho e todo um peso em forma de sujeira saiu de meu corpo. Ela então pediu para eu dar-lhes as costas novamente. Tirou óleo de sândalo do outro frasco e passou em meus cabelos. Lembrei-me de mamãe. Depois disso, ela lavou e limpou minhas unhas, em seguida as aparou com a tesourinha. Tanto das mãos, quanto dos pés.
Um último mergulho e meu banho estava terminado. Sai da água limpa, pura! Calidora me enxulgou com o manto de lã e, pegando um último pequeno frasco cristalino, passou essência de rosas em mim. O perfume me inebriava, revitalizava. Ela então pegou então a tesourinha e, sem mais demora, começou a aparar os pelos de meu sexo. Em seguida, pegou uma pinça e foi puxando os pelos periféricos. Sua precisão era espantosa, tirava os pelos e passava o lenço umedecido, logo em seguida, com maestria e rapidez. Depois de meu sexo, ela depilou minhas axilas. Passou mais essência de rosas em minha vulva e em minhas axilas e pronto! eu estava de volta ao mundo dos homens! Envolvi-me então com o manto de lã e seguimos de volta ao seu "quarto". Lá, ela abriu uma arca que parecia muito antiga, puxou de dentro uma camisola açafrão e me deu dizendo:
_Tome! Os ciganos me empurraram este tecido e fiz esta himation, não gostei muito, mas acho que ficará bem em você.
Vesti a estranha camisola e ela logo a ajeitou em mim. Rápida e precisa, ela pegou uma fita a arrumou meus cabelos como os dela. Em seguida, me pôs diante do espelho:
_Veja! _disse sorrindo.
Eu estava exótica, mas linda. Sorri, mas as lágrimas logo escorreram de meus olhos. Calidora então beijou-me o rosto sorrindo, enxugou-me as lágrimas e disse:
_Não chore mais, querida! Ainda tenho de maquiar seus olhos...

segunda-feira, 2 de maio de 2011

CALIDORA
















Minha convivência com Dimitru não durou muito tempo. Um dia, eu dedlhava seu alaúde e ele se queixou:

_Pare de mexer nas minhas coisas!

_Só estou querendo aprender a tocar. Você disse que me ensinaria.

_Disse que ia lhe ensinar, não que podia mexer em minhas coisas! Você é muito intrometida! É desleixada também, parece um fantasma esfarrapado! Vai assustar os ciganos quando eles passarem por aqui. Por sinal, eles já não gostam muito de você... _massacrou ele, lembrando o episódio com os ciganos, que eu havia lhe contado.

_Você é que parece um fantasma! E eu não preciso dos ciganos! _gritei de volta.

_Então vá embora! Você não me ajuda em nada, só atrapalha!

_Você é um egoista! _gritei.

Começei então a jogar suas coisas sobre ele _a panelinha o acertou na testa.

_Vá embora daqui! _vociferou ele, pegando uma vara para me bater.

Atirei uma pedra que o acertou no braço. Em seguida sai gritando:

_Eu vou mesmo! Fique ai no seu chiqueiro!

E para ofendê-lo mais, gritei em magiar:

_Fique com seu chiqueiro, seu porco romeno!

Entrei então pela floresta, furiosa e chorando. Andei sem rumo a noite toda. Quando a manhã caiu, ainda cinza, fiquei com vontade de esperar o sol esquentar e me matar com seus raios. Fiquei sentada sobre uma imensa pedra, coberta de musgo, com lágrimas caindo dos olhos, sem me importar com as rosas que acenavam, lindas, vermelhas, para mim. De repente, algo inusitado despertou-me de meu transe de mágoa. Senti um perfume delicioso no ar. Não era o das rosas. Então uma doce voz feminina falou em koiné:

_Bom dia! Não são lindas?!

Virei-me e vi uma mulher aparentando pouco menos de 30 anos. Era pálida _claramente uma vampira _usava uma camisola branca e um longo manto de lã, azul marinho, sobre os ombros. Usava a maquiagem estranha das vampiras que me atacaram, o cabelo era arranjado de forma parecida, mas não era uma delas. Esta era outra, era diferente, parecia meiga. Ela me olhou sorrindo e continuou:

_As rosas! Não são lindas?! _disse passando as mãos suavemente sobre elas e aspirando seu perfume.

Não respondi, virei meu rosto, emburrada e comecei a chorar. Foi quando senti uma mãozinha de criança tocar meu rosto. Uma vozinha de menina então indagou, também em koiné:

_Por que você tá chorando?... "Num" chora!...

Virei-me e vi uma linda menininha, aparentando uns cinco anos, de cabelos castanhos, pálida como uma vela, vestida à moda estranha da mulher. Lembrei-me de Sarka, meus lábios tremeram e as lágrimas inundaram meus olhos. A pequenina então abraçou-me a cabeça e acariciou meus cabelos. A abraçei, deitei minha cabeça em seu frágil peito e começei a soluçar. Senti então a mão da mulher afagar-me os cabelos. Foi quando uma terceira voz, de menino, perguntou no grego alexandrino:

_Por que ela está chorando, mãe?

_Ela só está triste, filho!... _respondeu baixinho, em tom maternal.

_Por que? _insistiu o menino.

_Shiiii!... _conteve ela, sugerindo silêncio.

Aquela estranha família ficou ali, me consolando, até que recuperei minha compostura. Não demorou muito, a atenção das crianças se dispersou. A menininha colhia flores e o garotinho _que deveria ter uns sete anos _observava uma borboleta. Foi quando a mulher pôde conversar comigo. Sorrindo, indagou:

_Nunca vi você aqui antes. Não é sempre que encontro uma lâmia.

_O que é uma lâmia? _perguntei-lhe em koiné.

_Uma lâmia? Ora, você é uma lâmia!

_Você quer dizer uma vampira? _inquiri.

_Ah! É assim que vocês aqui da România falam! Sempre esqueço, nunca me acostumei.

_Você é grega, não é?

_Sim, sou da Tessália.

_Desde quando está aqui?

_Cheguei com uma legião. Meu ex-marido era centurião. Isso foi antes da România se converter à fé de vocês cristãos.

Quando ela falou isso, vi que entrara em um mundo muito estranho, mais estranho do que eu imaginava. Ela fora amaldiçoada há séculos! Eu ainda era incapaz de mensurar a dimensão disso. Ela porém, absolutamente alheia às minhas reflexões, simplesmente continuava colhendo suas rosas e dando atenção a seus filhos.

_Mamãe, mamãe, olha essa florzinha! _disse a menininha.

_É, filha! Deixa mamãe ver!...

Enquanto ela atendia a filha, perguntei:

_Qual é o seu nome?

_Calidora! _respondeu sorrindo.

domingo, 1 de maio de 2011

JÁNOS




















Me prendi a Dimitru como um carrapato. Ele possuía uma estrutura mais humana de vida. Em sua pequena gruta, guardava uma trouxa com roupas _poucas, de fato, mas ele as tinha _sua flauta e um alaúde, uma garrafa com algo oleoso dentro (banha de porco, vim saber depois), uma caneca de ferro e uma panelinha, também de ferro. Senti cheiro de carne de porco assada, quando entrei em seu "lar" pela primeira vez. Ele percebeu meu desejo e foi gentil:
_Quer?... Não vou comer mais.
Tomei a panela de suas mãos e lambuzei dedos e lábios com o porco. Ele também tinha pão. Perguntei onde ele tinha conseguido aquilo. Ele respondeu:
_Com os ciganos e com János.
_Quem é János?
_Ele é um ermitão. Vive na floresta e colhe ervas.
Lembrei-me imediatamente do homem que me dera malva, quando estava com tia Mónika, em frente ao solar. Indaguei então a Dimitru:
_Como ele é?
_Você o conhecerá, ele provavelmente virá me visitar hoje. Começou a primavera e ele virá aqui, com certeza.
_Por que?
_Ele colhe ervas por aqui. Não quer que eu o confunda e o ataque.
Ri quando ele falou isso. Começava a ver que a vida de um vampiro não era tão desumana assim. Fiquei ali com Dimitru para esperar por János. Ficamos sentados sobre o velho tronco de pinheiro, um ao lado do outro, como um estranho casal. Ele tocava sua flauta e eu embalava a cabeça, ao som da música. Era meio dia _e como o inverno ainda não findara de todo _o dia nublado ainda nos permitia ficar fora. Como Dimitru previra, János apareceu e era quem eu pensava. Chegou tilintando suas quinquilharias, dependuradas sobre sua mula. O chapéu de abas largas e baixas na cabeça, os cabelos longos, com alguns fios grisalhos. Antes mesmo de saudar Dimitru, olhou direto para mim e exclamou alto, em magiar:
_Ora, ora, quem está aqui, senão a jovem marquesa desaparecida!
Baixei a cabeça, tristemente, em resposta.
_Como vai, Dimitru! _saudou János, agora em romeno.
_Já esperava por você.
_Eu sou certo como o galo ao amanhecer! _gabou-se János.
Ele então abraçou Dimitru calorosamente e entregou a ele um odre que trazia ao ombro. Dimitru o abriu imediatamente e tomou um logo gole. Era leite de cabra, que lhe escorria pelos cantos da boca. O leite imediatamente me seduziu e olhei para odre como uma raposa desperta pelo odor da carne. János notou minha gula e disse a Dimitru:
_Não seria mais correto servir as damas primeiro?
Dimitru estendeu o odre em minha direção, oferecendo. Assenti com a cabeça e ele se aproximou e me deu o odre. Comecei a tomar o leite com gula. Não estava fervido e exatamente por isso meu desejo e satisfação eram maiores. János riu e disse bondosamente:
_Isso, tome. É bom.
Em seguida, porém, ele parou de sorrir e cochichou com Dimitru:
_Por que fez isso, Dimitru?...
_Não fui eu... foram as prostitutas. _defendeu-se Dimitro, falando baixo.
Ouvi e parei de beber o leite. Fechei a cara. Houve um breve silêncio, János então se aproximou e tocou-me delicadamente no queixo, erguendo meu rosto. Olhei para ele com os olhos já cheios de lágrimas. Ele enxugou minhas lágrimas e disse em magiar:
_Não chore, Irina. Mesmo agora você tem amigos.
Cheia de dor, afastei-me dele e encostei-me, cabisbaixa, em um pinheiro. Ele se aproximou novamente e senti sua mão afagar meus cabelos. Com voz chorosa, gritei então:
_Saia, vá embora!
_Calma... _respondeu ele, muito amável.
_Vá embora! Por que se importa comigo? Sou uma aberração!...
_Não. _respondeu ele calmamente _Não é, não.
Simplesmente continuei chorando. Ele então me dissuadiu:
_Veja, eu tenho um presente para você...
Fui parando de chorar e voltei-me para trás, para ver que presente era aquele.
Ele estava com uma sacola rota nas mãos. Com um sorriso nos lábios, meteu a mão dentro da sacola e tirou... um espelho!
Olhei para o belo espelho, com moldura de prata, em suas mãos e me aproximei. Tomei rapidamente o espelho de suas mãos e vi meu próprio rosto. Não estava mais branco, azulado, como no dia dos ciganos. Estava pálido sim, mas bem mais natural. Ajeitei meus cabelos com as mãos, voltando a ter vaidade. Sorri... Foi quando notei que meus dentes não estavam longos como as presas de um lobo. Olhei então para János, cheia de felicidade e indaguei:
_Como posso me ver no espelho? Vampiros não podem aparecer no espelho. E meus dentes voltaram ao normal!... Estou sã novamente?... A maldição acabou?!...
János riu e respondeu:
_Você ainda vai descobrir muita coisa, Irina, muita coisa!... Mas... _disse ele, parando de sorrir _você ainda está amaldiçoada. A maldição apenas... se ocultou.
Meu semblante voltou a ficar triste, mas János interveio:
_Mas, pelo menos... sabe agora que não precisará parecer uma fera sempre. Desde que permaneça alegre e aprenda mais e mais. Venha, venha sentar comigo e Dimitru. Trouxe mais presentes e tenho muita coisa a lhe dizer.
Mais calma fui sentar-me com eles e conversar. János puxou de sua sacola um embrulho e o pôs nas mãos de Dimitru dizendo:
_Tome, Dimitru, trouxe para você.
Surpreso, Dimitru sorriu e abriu o embrulho. Era um queijo. Os olhos de Dimitru brilharam e ele apenas ria e olhava para János, como uma criança que acabara de ganhar um brinquedo.
_Vamos, prove! É do bom! _incentivou János.
Dimitru então tirou uma pequena faca escondida na cintura, debaixo de seu casaco e cortou o queijo. Tirou uma fatia da espessura de dois dedos e mordeu. Mastigou sorrindo e agradeceu a János:
_Obrigado, János... Obrigado! Você é muito amigo! _dizia com a boca cheia.
János batia com a palma da mão em seu braço, rindo com seu jeito estranho, mas que me parecia desinteressado e bondoso. Ele então puxou uma garrafa de vinho de sua sacola e falou:
_Tenho mais outra aqui. Hoje vamos comemorar!
Eu e Dimitru rimos como crianças. Naquela tarde, comemos queijo, cantamos, Dimitru tocou alaúde e até bebemos vinho. János me explicou muito sobre astrologia e folgamos até a noite cair, sem que ele nada temesse de nossa parte.