domingo, 5 de agosto de 2012

TESTEMUNHO


Um ano após nossa vitória, grande romaria se fez à Somlyó. Székelys de todos os cantos de nosso país vieram assistir à missa em agradecimento à Virgem. Uma imagem Dela com o Menino _que pareciam tão sofridos quanto nosso povo _foi levada a um singelo santuário de madeira, erguido no meio do campo onde ocorreu a batalha. Uma pequena feira se formou para atender à toda gente. Bandeiras, fitas e flores enfeitavam as carroças dos peregrinos. Crianças fofas e lindas mostravam que nossa raça sobrevivia. 
Passei os quatro anos seguintes morando com Mihail em nosso castelo. Não tive de me preocupar mais com Greta, pois esta foi viver em Kolozsvár, junto com os filhos, tão logo a paz se fez. Porém, nem tudo era bem-aventurança. Era estranho esconder minha condição e viver como uma espécie de doente, tendo hábitos diferentes como jamais sair ao sol brilhante, beber leite de cabra não fervido e, vez por outra, sair à noite para caçar salteadores na estrada, ou para encontrar os ciganos. Dizia a Mihail simplesmente que ia cavalgar. Ele compreendia e não se opunha. O povo porém comentava sobre as saídas noturnas da estranha irmã do marquês de Somlyó. E muitos repetiam "_Ela é vampira!" e outros confirmavam "_Sim, ela é vampira!".
Neste meio tempo _enquanto me debatia com estes pequenos dilemas domésticos _János Sigismond abdicou ao trono da Hungria, a que tinha direito, deixando-o para os Habsburgos, e formalizou-se como príncipe da Transilvânia. Porém, perdeu seu título pouco depois, quando István Báthory foi eleito pelos representantes da maioria das casas. Um ano depois, Sigismond tombava morto. Alguns disseram que foi de desgosto e melancolia. Eu, porém, aprendi o suficiente com Oanna para reconhecer todos os tipos de crimes cometidos com o uso de venenos. 
Em 72, quando a doença condenou meu já idoso frei Emil, revelei-lhe minha condição. Tanto para ele, quanto para Andrei, que ao lado de seu companheiro estava sentado, pegando sua mão, sem conseguir conter sua dor. Deitado à cama, frei Emil simplesmente acariciou meu rosto e disse:
_Isso não importa, minha menina. Amo e sempre amarei você do mesmo jeito...
Minhas lágrimas rolaram grossas. Ele fez-me prometer que também revelaria tudo à minhas irmãs. Após seu enterro, em uma nublada manhã de outono, no cemitério da abadia franciscana, parti imediatamente para Kolozsvár. Minhas irmãs ficaram um tanto assustadas. Vladia um tanto desconcertada. Mas me aceitaram. Vladia aproveitou o ensejo para me convidar novamente:
_Irina, venha morar conosco. Juliu casou-se há um ano. Sarka mês passado. Apenas Lisia está comigo agora. Há espaço demais sobrando nesta imensa casa! Mesmo com Mila e as criadas, me sinto só aqui.
Ri-me quando ela disse isso. Mila riu também. Vladia continuou:
_Poderá levar uma vida quase normal. Você é linda! Com certeza terá muitos clientes, que suprirão toda sua necessidade de... sperma!... _e riu-se quando pronunciou esta palavra que lhe era desconhecida. Em seguida prosseguiu. _Se tudo o que disse for verdade, terei a casa lotada todas as noites. Seremos mais ricas que nunca! Venha! Prometo mandar a cozinheira fazer comida sem alho para você.
Não pude deixar de rir novamente quando ela disse isso. Aceitei finalmente seu convite e, de fato, consegui lotar a casa todas as noites. Minha fama em Kolozsvár era absoluta! Choviam presentes e pedidos de casamento. Passamos a levar uma vida de princesas, tão ricas nos tornamos. Atendendo ao conselho de Vladia, guardei o grosso de minha fortuna em um banco. Notei neste momento que uma nova ordem se formava no mundo: a dos capitalistas. Como não notara antes!... Não era de admirar quantas pessoas mais tornavam-se infiéis a cada dia. O protestantismo, em especial o de Calvino, passou a ser a fé deles, mercadores e banqueiros. E estes cresciam como mato nas cidades. Apenas para mostrar que o mundo dos guerreiros, como os székelys, se exauria.
Tal fato porém não me incomodava, desde que visse o sorriso de Lisia. Como ela estava ficando linda! Olhar para ela era praticamente olhar para mim, uns doze anos antes. E ela me adorava. Fazia questão de imitar-me o jeito e até as roupas. Graças à Vladia, consegui ter, no tempo em que residi em Kolozsvár, uma vida familiar. Mas como acontecera no castelo, com Mihail, minhas alegrias ao lado de minhas irmãs não demorou muito tempo.
Um incidente mostrou definitivamente a fragilidade de minha condição. Fomos convidadas a assistir ao casamento de Erzsébet, sobrinha infiel do príncipe István. Após a cerimônia, a jovem noiva se aproximou de mim e investigou, cheia de interesse:
_Então você é a famosa Irina, de que tanto falam!
Não lhe respondi, apenas a fitei com o semblante fechado, mostrando meu desconforto com sua impertinência. Ela prosseguiu em um tom que achei soberbo e algo perverso:
_Meu Deus! Então é verdade! Você é linda! Parece mesmo ter a minha idade e não os vinte e sete anos que lhe atribuem. 
Tocando e acariciando meu rosto, indagou:
_Toda esta beleza e juventude vêm... do sangue?...
A fitei com força. Seus olhos miravam os meus com a ansiedade dos lobos famintos. Para não ter de lhe responder, afastei-me:
_Com sua licença!
Deixei o palacete de Vladia quando retornamos à Kolozsvár. Expliquei-lhe que já estava ficando difícil esconder que eu não envelhecia. Baixando os olhos de tristeza, ela aceitou meu argumento. Mais difícil foi explicar à Lisia minha partida. Disseram que eu iria estudar na Rússia. No dia da partida, abraçou-me com força, chorando, sem querer me largar. Depois, correu gritando para o quarto. Vertendo lágrimas, com o coração esquartejado, despedi-me de Vladia e Mila.
Tomei então o coche rumo à Brasov. Tive de aceitar o fato de que estava condenada a morar com Oanna. Quando cheguei em seu castelo, ela me recebeu com um sorriso sínico e vitorioso nos lábios. Apesar de voltar à rotina normal, passei a fugir de vez em quando, refugiando-me na caverna de Calidora para refletir. Esta então apresentou-se-me vazia, sem os pertences de minha "irmã", que foram levados pelos ciganos. Devo admitir que a caverna nua estimulou mais ainda minha meditação. E foi por conta do hábito de vir aqui que comecei a escrever estas memórias.
Hoje, concluo aqui meu testemunho. Ao longo de um ano e meio, tenho relatado, com toda a exatidão possível que minha memória permite e com o zelo dos ascetas, tudo o que se passou comigo e com minha casa. Não tenho nenhum temor quando estou aqui, nenhuma preocupação. Nem a possibilidade de reencontrar Traian me intimida. Este, por sinal, desapareceu. Assim como Florin e Ioan, de quem nunca mais tive notícias, mesmo no reino dos mortos. Traian deve estar no fundo de alguma caverna, hibernando, como disse Oanna, se refugiando no tempo. De qualquer forma, isto não me importa. Saturno também é meu senhor. Tenho a eternidade para enfrentá-lo, o infinito tempo para viver... ou penar!... Aqui portanto fico!

Irina de Somlyó, 07 de janeiro, do ano da Graça de 1577.

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