domingo, 5 de agosto de 2012

ENFIM...



Juliana silencia e dona Ornella olha para todos. Gabriel está com a mão tapando a boca e com os olhos vermelhos, arregalados. Ivette segura a cabeça e o rosto entre as mãos, com os dedos estendidos, como se quiszesse tapar os ouvidos e não ouvir mais nada. André está de cabeça baixa, calado. Diante do constrangimento reinante, a boa senhora arremata:
_Bom, é isso!... Acabou!... Espero que tenham gostado!...
Nenhum dos presentes se predispõe a responder. Por seu turno, Juliana olha de um lado para o outro, sem entender toda aquela comoção. Em seguida, abre um lindo e estusiasmado sorriso e dispara:
_Ah! Eu amei!...

TESTEMUNHO


Um ano após nossa vitória, grande romaria se fez à Somlyó. Székelys de todos os cantos de nosso país vieram assistir à missa em agradecimento à Virgem. Uma imagem Dela com o Menino _que pareciam tão sofridos quanto nosso povo _foi levada a um singelo santuário de madeira, erguido no meio do campo onde ocorreu a batalha. Uma pequena feira se formou para atender à toda gente. Bandeiras, fitas e flores enfeitavam as carroças dos peregrinos. Crianças fofas e lindas mostravam que nossa raça sobrevivia. 
Passei os quatro anos seguintes morando com Mihail em nosso castelo. Não tive de me preocupar mais com Greta, pois esta foi viver em Kolozsvár, junto com os filhos, tão logo a paz se fez. Porém, nem tudo era bem-aventurança. Era estranho esconder minha condição e viver como uma espécie de doente, tendo hábitos diferentes como jamais sair ao sol brilhante, beber leite de cabra não fervido e, vez por outra, sair à noite para caçar salteadores na estrada, ou para encontrar os ciganos. Dizia a Mihail simplesmente que ia cavalgar. Ele compreendia e não se opunha. O povo porém comentava sobre as saídas noturnas da estranha irmã do marquês de Somlyó. E muitos repetiam "_Ela é vampira!" e outros confirmavam "_Sim, ela é vampira!".
Neste meio tempo _enquanto me debatia com estes pequenos dilemas domésticos _János Sigismond abdicou ao trono da Hungria, a que tinha direito, deixando-o para os Habsburgos, e formalizou-se como príncipe da Transilvânia. Porém, perdeu seu título pouco depois, quando István Báthory foi eleito pelos representantes da maioria das casas. Um ano depois, Sigismond tombava morto. Alguns disseram que foi de desgosto e melancolia. Eu, porém, aprendi o suficiente com Oanna para reconhecer todos os tipos de crimes cometidos com o uso de venenos. 
Em 72, quando a doença condenou meu já idoso frei Emil, revelei-lhe minha condição. Tanto para ele, quanto para Andrei, que ao lado de seu companheiro estava sentado, pegando sua mão, sem conseguir conter sua dor. Deitado à cama, frei Emil simplesmente acariciou meu rosto e disse:
_Isso não importa, minha menina. Amo e sempre amarei você do mesmo jeito...
Minhas lágrimas rolaram grossas. Ele fez-me prometer que também revelaria tudo à minhas irmãs. Após seu enterro, em uma nublada manhã de outono, no cemitério da abadia franciscana, parti imediatamente para Kolozsvár. Minhas irmãs ficaram um tanto assustadas. Vladia um tanto desconcertada. Mas me aceitaram. Vladia aproveitou o ensejo para me convidar novamente:
_Irina, venha morar conosco. Juliu casou-se há um ano. Sarka mês passado. Apenas Lisia está comigo agora. Há espaço demais sobrando nesta imensa casa! Mesmo com Mila e as criadas, me sinto só aqui.
Ri-me quando ela disse isso. Mila riu também. Vladia continuou:
_Poderá levar uma vida quase normal. Você é linda! Com certeza terá muitos clientes, que suprirão toda sua necessidade de... sperma!... _e riu-se quando pronunciou esta palavra que lhe era desconhecida. Em seguida prosseguiu. _Se tudo o que disse for verdade, terei a casa lotada todas as noites. Seremos mais ricas que nunca! Venha! Prometo mandar a cozinheira fazer comida sem alho para você.
Não pude deixar de rir novamente quando ela disse isso. Aceitei finalmente seu convite e, de fato, consegui lotar a casa todas as noites. Minha fama em Kolozsvár era absoluta! Choviam presentes e pedidos de casamento. Passamos a levar uma vida de princesas, tão ricas nos tornamos. Atendendo ao conselho de Vladia, guardei o grosso de minha fortuna em um banco. Notei neste momento que uma nova ordem se formava no mundo: a dos capitalistas. Como não notara antes!... Não era de admirar quantas pessoas mais tornavam-se infiéis a cada dia. O protestantismo, em especial o de Calvino, passou a ser a fé deles, mercadores e banqueiros. E estes cresciam como mato nas cidades. Apenas para mostrar que o mundo dos guerreiros, como os székelys, se exauria.
Tal fato porém não me incomodava, desde que visse o sorriso de Lisia. Como ela estava ficando linda! Olhar para ela era praticamente olhar para mim, uns doze anos antes. E ela me adorava. Fazia questão de imitar-me o jeito e até as roupas. Graças à Vladia, consegui ter, no tempo em que residi em Kolozsvár, uma vida familiar. Mas como acontecera no castelo, com Mihail, minhas alegrias ao lado de minhas irmãs não demorou muito tempo.
Um incidente mostrou definitivamente a fragilidade de minha condição. Fomos convidadas a assistir ao casamento de Erzsébet, sobrinha infiel do príncipe István. Após a cerimônia, a jovem noiva se aproximou de mim e investigou, cheia de interesse:
_Então você é a famosa Irina, de que tanto falam!
Não lhe respondi, apenas a fitei com o semblante fechado, mostrando meu desconforto com sua impertinência. Ela prosseguiu em um tom que achei soberbo e algo perverso:
_Meu Deus! Então é verdade! Você é linda! Parece mesmo ter a minha idade e não os vinte e sete anos que lhe atribuem. 
Tocando e acariciando meu rosto, indagou:
_Toda esta beleza e juventude vêm... do sangue?...
A fitei com força. Seus olhos miravam os meus com a ansiedade dos lobos famintos. Para não ter de lhe responder, afastei-me:
_Com sua licença!
Deixei o palacete de Vladia quando retornamos à Kolozsvár. Expliquei-lhe que já estava ficando difícil esconder que eu não envelhecia. Baixando os olhos de tristeza, ela aceitou meu argumento. Mais difícil foi explicar à Lisia minha partida. Disseram que eu iria estudar na Rússia. No dia da partida, abraçou-me com força, chorando, sem querer me largar. Depois, correu gritando para o quarto. Vertendo lágrimas, com o coração esquartejado, despedi-me de Vladia e Mila.
Tomei então o coche rumo à Brasov. Tive de aceitar o fato de que estava condenada a morar com Oanna. Quando cheguei em seu castelo, ela me recebeu com um sorriso sínico e vitorioso nos lábios. Apesar de voltar à rotina normal, passei a fugir de vez em quando, refugiando-me na caverna de Calidora para refletir. Esta então apresentou-se-me vazia, sem os pertences de minha "irmã", que foram levados pelos ciganos. Devo admitir que a caverna nua estimulou mais ainda minha meditação. E foi por conta do hábito de vir aqui que comecei a escrever estas memórias.
Hoje, concluo aqui meu testemunho. Ao longo de um ano e meio, tenho relatado, com toda a exatidão possível que minha memória permite e com o zelo dos ascetas, tudo o que se passou comigo e com minha casa. Não tenho nenhum temor quando estou aqui, nenhuma preocupação. Nem a possibilidade de reencontrar Traian me intimida. Este, por sinal, desapareceu. Assim como Florin e Ioan, de quem nunca mais tive notícias, mesmo no reino dos mortos. Traian deve estar no fundo de alguma caverna, hibernando, como disse Oanna, se refugiando no tempo. De qualquer forma, isto não me importa. Saturno também é meu senhor. Tenho a eternidade para enfrentá-lo, o infinito tempo para viver... ou penar!... Aqui portanto fico!

Irina de Somlyó, 07 de janeiro, do ano da Graça de 1577.

PAZ


É evidente que a exultante alegria da vitória, logo foi substituída pela dor da perda. Marton e seus filho, Miklos, nos deixaram, assim como o corajoso Boldizsár, o aldeão que se ofereceu, junto com outros companheiros, para reforçar nossas tropas. Vênus sabe o quanto eles foram fundamentais para nossa vitória! Seu funeral foi singelo, ao som da duda, porém digno dos melhores guerreiros. Triste foi ver as viúvas e crianças chorando. Uma faca cortou meu coração, ao ver Maryann chorando, inconsolável, se debruçando e agarrando ao corpo do pai. Afastei-me, não suportei! Lembrei-me de papai... Em minha mente, uma única frase se repetia sem parar: "_Maldito Sigismond!". Para aumentar minha dor, no dia seguinte, o corpo de papai foi finalmente levado para o nosso cemitério. Frei Emil realizou nova e singela cerimônia. Mais que tranzida de dor, limitei-me a derramar lágrimas e pôr uma rosa sobre seu túmulo.
Passados os dias de luto, Mihail mandou fazer uma grande festa, para comemorar o primeiro mês de nossa vitória. Os franciscanos, porém, exigiram que antes da festa fosse realizada uma missa no campo onde ocorrera a batalha, em memória dos mortos. A missa foi linda! O fato de tê-la visto de longe _protegendo-me do sol, à sombra dos pinheiros _talvez a tenha tornado até mais bela. Todo o povo estava lá reunido. Os franciscanos trouxeram a imagem da Virgem com o menino Jesus _que pareciam tão sofridas quanto nosso povo _e agradeceram à ela pela vitória e pela paz que finalmente estávamos desfrutando.
De fato, Sigismond pareceu ter desistido de nos atormentar após esta batalha. Pouco a pouco, não ouvimos mais falar em nenhum embate, em qualquer lugar que fosse do país. A única informação que nos vinha, era a de que seus homens se detinham na fronteira oeste, como se quisessem nos isolar do resto da Transilvânia. Ir para Kolozsvár se tornou impossível. Isso porém, não nos incomodou. Mantínhamos nosso comércio com oriente e com os ciganos. Nos concentramos na reconstrução de nosso país.
Passei a morar com Mihail, em nosso castelo. Foi cheia de alegria que vi minha terra voltar pouco a pouco a ser o que era: linda e feliz! Só sentia dor em não poder passear por ela em uma linda manhã de sol, como fazia antigamente. Mas os dias nublados do outono me eram profundamente gratificantes quando chegavam. Durante o verão, minha felicidade eram as tertúlias noturnas que fazíamos no castelo, com os amigos. Mika se impressionou com minha nova capacidade para beber e permancer acordada e alegre. Não parecia mais aquela menina que tombava de sono durante os festejos.
O ano de 1568 começou e não tivemos nenhuma animosidade. A tranquilidade só foi quebrada quando um jovem cavaleiro chegou com uma mensagem inesperada:
_János Literati manda lhe dizer que o príncipe convocou uma reunião! Disse que ele quer propôr a paz!
_O que? Está brincando comigo, rapaz?! _irritou-se Mihail.
_Não, senhor! Eu mesmo estou espantando! Mas lhe asseguro que foi o próprio Literati quem me enviou aqui! Aqui está sua carta, com sua assinatura e selo!
Mihail abriu a carta e a leu com atenção. Em seguida balbuciou:
_Meu Deus!... Como é possível isto ser verdade?...
Era inacreditável, mas era verdade! Em dois dias, Mika partiu em viagem para Kolozsvár. Ele se hospedou na casa de Vladia e, acompanhado de János Literati, foi até Turda, onde foi realizada a solene reunião. O que Mihail me contou, em carta, sobre este momento foi o seguinte:

"_Lá chegando, encontramos vários companheiros, líderes de nossa resistência. Assim como líderes saxões do levante de 62. Os convidados esperaram pelo príncipe em uma elegante sala, até que ele apareceu... Sim, ele mesmo, em pessoa, János Sigismond Zápolya!... Calvo, porém ainda jovem, escoltado por dois guarda costas, com o semblante fechado de quem ainda não decretara paz em seu coração. A forma como pisava forte com suas longas botas e a mão o tempo todo sobre o cabo da espada, delatavam isso. Ao seu lado, um senhor de cabelos brancos, que transparecia maior serenidade: Ferenc Dávid. Por sinal, foi este quem abriu a reunião. Fez longo e eloqüente discurso sobre a liberdade de crença e deu início às discussões de foro teológico. Confesso que, nos dias que se seguiram, fugi das palestras de Giorgio Blandrata, o médico italiano que prega contra a Trindade. Estavam ele e Ferenc Dávid então apresentando sua nova igreja, que agora também é a igreja do príncipe, a Igreja Unitária. Por fim, após muitos discursos piedosos, a paz foi sancionada! Após penarmos ali do sexto ao décimo terceiro dia deste mês de janeiro, finalmente vimos e ouvimos o que queríamos: 

'Sua majestade, o nosso Senhor, de que forma ele - juntamente com seu domínio - legislou sobre o assunto de religião nas dietas anteriores, na mesma matéria agora, nesta Dieta, reafirma que em todo lugar os pregadores devem pregar o Evangelho e explicar cada um segundo a sua compreensão, e a congregação se gostar, bem. Se não, ninguém pode obrigá-los para as suas almas não sejam satisfeitas, mas devem ser autorizadas a manter um pregador cujo ensinamento eles aprovam!'

Ao ouvir a leitura deste texto, confesso que não consigo imaginar que estas palavras tenham vindo daquele homem calvo e obstinado que vi ali sentado, sempre com a mão sobre o cabo da espada. Antes sim, creio que elas tenham vindo não apenas da boca, mas do coração de Ferenc Dávid, que foi quem o leu. No mais, quero dizer que em breve estarei de volta, para abraçar minha Maryann e meus filhos e para contar a você, minha linda e corajosa Irina, como tudo se passou, com mais detalhes."

De fato, quando Mika voltou, passamos muitos dias conversando sobre este evento. Nunca pensei, em minha consciência, desde que vim ao mundo, que se pudesse fazer paz entre diferentes crenças. A própria Bíblia conta sobre como Jeú e seus soldados passaram todos os sacerdotes de Baal no fio da espada.