sábado, 23 de abril de 2011

DIMITRU


























Nunca bebi tanto sangue romeno quanto nesse primeiro inverno no Bicazului. De nascimento sou meio székely e meio romena. Possuo um pouco de sangue russo, por conta de vovó Vladia, mãe de minha mãe, de quem minha irmã herdou o nome. Mas de tanto beber sangue romeno, talvez minha porção romena tenha aumentado consideravelmente. Porém, sabia que meu banquete não demoraria muito. Logo chegaria a época dos contrabandistas tomarem o caminho de volta, rumo ao leste. Eu sabia que, quando retornassem, viriam bem armados e preparados contra mim. Por conta disso, antecipei minha retirada. Sai de minha gruta, próxima à trilha e me embrenhei de novo na floresta. Voltei a me alimentar de animais, para não despertar suspeitas. Não tardou para a primavera chegar. Quando o gelo começou a derreter e gotejar das pontas dos galhos, eu já me encontrava próxima ao lago Santa Ana.

Foi neste período que reencontrei um velho conhecido. Fui surpreendida, um fim de tarde, pela melodia suave de uma flauta doce. A música me era familiar, embora não conseguisse lembrar porque. Fui em direção a ela e me deparei com o vampiro magro que vira em minha infância. Lá estava ele, sentado sobre um tronco derrubado de pinheiro, com suas roupas rotas de bardo, tocando sua flauta despreocupadamente. Aproximei-me sem medo e sentei a seu lado, pois o tronco era grande. Ele simplesmente continuou tocando, até terminar. Então baixou a flauta e ficou parado, com o rosto encoberto pelos cabelos longos.

_Foi lindo! _elogiei.

_Não falo magiar! _respondeu ele em romeno.

_Perdão!... _desculpei-me em romeno.

_Como aprendeu romeno? _perguntou.

_Minha mãe era romena. _respondi.

Ele então voltou o seu rosto pálido para mim, trazendo-me de volta antigas lembranças de infância. Sorriu, demonstrando jovialidade, apesar de sua compleição castigada. Aparentava ter menos de trinta anos. Disse então:

_Eu lembro de você. Você era a menininha que vi correndo na neve, acho que há uns dez anos.

Ri levemente como resposta, baixando a cabeça, envergonhada.

_Você ficou linda!... _elogiou, tocando meu rosto. _Mas quem fez isso com você?... _inquiriu.

Balancei a cabeça negativamente, dei de ombros e respondi:

_Não as conheço.

_Foram as meretrizes, eu as conheço bem. _respondeu em um tom de desprezo.

_Então elas não são estranhas aqui!...

_Não, são bem velhas. Talvez as mais antigas daqui.

Ele então tomou da flauta novamente e começou nova melodia. O ouvi calada, por um tempo, mas logo a curiosidade instigou-me a perguntar:

_Foram elas que lhe amaldiçoaram?

_Não, quem me amaldiçoou já morreu, na mão dos ciganos.

_Quem foi?

_Uma nobre perdida, como você.

Fiquei ofendida com o que ele disse e rebati:

_Não sou perdida!

_Estamos todos perdidos, Irina! _respondeu.

_Como sabe meu nome?

_Foi assim que sua babá lhe chamou.

_Ainda lembra disso?

_Sim.

Calei-me novamente. Ele voltou a tocar. Poucos minutos depois, perguntei:

_Qual é o seu nome?

_Dimitru.

terça-feira, 19 de abril de 2011

SANGUE EMBRIAGADO

























Ilustração de Aqualung, Jethro Tull.



Enquanto o inverno estava forte, eu era uma fera solitária no Cheile. Não tinha outra companhia senão a dos animais. Mas bastou o inverno amenizar para estranhos visitantes aparecerem. Vinham em pequenas caravanas, montados em seus cavalos e trazendo suas mulas carregadas de grandes trouxas. Como pude esquecer da existência dessas criaturas?!... Ladrões e contrabandistas! Quem mais se arriscaria a enfrentar qualquer perigo, conhecido ou lendário, em nome da ganância? Logo na primeira vez que os encontrei, notei que seríam vítmas fáceis de minha fome.

Os primeiros que encontrei, vinham enfrentando destemidamente a noite gelada do inverno. Desci de meu esconderijo, esgueirando-me por trás das rochas e arbustos, até ficar à boa distância de sua passagem. O som calmo e compassado dos cascos de seus animais ecoava pela tortuosa trilha natural do Cheile, entre os paredões de rocha. Eram três. Conclui rapidamente que pegar o último da fila era o correto a se fazer. Permaneci atrás de uma rocha, vendo-os passar diante de mim. Quando pude ver as costas do último, o mais baixo deles, corri rapidamente e pulei em sua garupa. Com o braço direito, o abracei firmente, com a mão esquerda tapei-lhe a boca, com uma dentada poderosa, sorvi seu sangue. O cavalo obviamente sentiu o súbito aumento de peso em suas costas e relinchou. Rapidamente derrubei minha presa e o fui arrastando para detrás de uma rocha. Ele já estava desacordado. Os outros dois voltaram-se para trás e me viram levando seu comparsa.

_Alin!... _gritou um deles, com claro sotaque romeno.

Um tiro foi disparado, acertando o solo e levantando neve, bem próximo de mim. O mais depressa possível levei o pobre Alin para detrás da rocha. Enquanto os dois se aproximavam, não perdi tempo e suguei o máximo de sangue possível. Antes que saltassem de seus cavalos, quebrei o pescoço de minha vítima, para que seu corpo não pudesse receber seu espírito novamente. Não desejava minha maldição para ninguém. Fugi então rapidamente por entre as rochas e arbustos enquanto as vozes dos dois contrabandistas ecoavam entre lamentos e maldições:
_Alin!... Oh, meu Deus! Não, Alin!... _disse a voz seca de um, em romeno.

_Vampiro desgraçado! _praguejou o outro, também em romeno. Em seguida desferiu outro tiro de pistola.

Eu, porém, já estava bem longe de seu alcançe. Apenas continuei ouvindo o ladrão romeno praguejar:

_Eu vou matar você, seu demônio desgraçado! Eu vou matar você!...

Meu segundo contrabandista fora até mais desafortunado que o primeiro. Ele resolvera saltar do cavalo, ao meio de uma tarde, para urinar à beira da estrada. Eu já o esperava detrás de uma rocha. Seu único parceiro assobiava uma velha canção, tranquilamente, montado. Não esperei minha vítima sequer pôr o membro para fora, o ataquei rápida como uma cobra. Mais uma vez sorvi o sangue com força, tapando a boca de minha presa. Seu sangue estava encharcado de vinho vagabundo da Romênia. Quebrei então seu pescoço e corri para me abrigar. Seu amigo de pândega simplesmente continuava montado, cantarolando em romeno, com a voz arrastada. Não o esperaria cair também, para poder beber seu sangue. Confesso que sangue embriagado não me agradou nem um pouco. Além do sabor ruim, me causou um mal estar tão grande que vomitei.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

ASSOMBRAÇÃO




















Cena de Drácula, 1979.



Foi como um animal que recebi a chegada do inverno. Minhas roupas se tornaram andrajos! Meu vestido sequer cobria minhas pernas, havia se transformado em farrapos soltos. Eu era praticamente um bicho, vivendo do que caçava e me escondendo em tocas. Tendo alcançado o Cheile Bicazului, encontrei um mundo de grutas para me esconder. Durante pelo menos um mês _enquanto o inverno estava em seu período mais violento _me alimentei da carne e do sangue de animais, devorando-os crus. Meu poder de encantar as presas me ajudou. Era capaz de tirar grandes falcões dos galhos como se fossem dóceis passarinhos. Só para depois devorá-los com vísceras e tudo.
Mas eu ainda pertencia ao reino dos homens. Ainda tinha sua alma confusa, que mistura razão e paixão. Em um início gelado de tarde, eu cheguei até uma estrada. Nela havia um carroção de ciganos parado. Eles haviam passado a noite ali, pois dois homens tiravam a neve que se acumulara sobre as rodas. Uma mulher, aparentando vinte e poucos anos, cuidava de cinco crianças, que insistiam em correr de um lado para o outro, apoquentando-a. Ouvia-a gritar o tempo todo, chamando uma ciganinha que devia ter não mais que quatro anos:
_Mathuanka! Mathuanka!... _e lhe estendia a mão e ralhava em sua língua, a qual eu não entendia nada.
Enquanto a jovem se ocupava das crianças, uma velha cigana abanava com sua ventarola uma pequena fogueira improvisada, para alimentar as chamas. Neste momento a pequena Mathuanka _que era uma linda menina de cabelos e olhos castanhos _correu em minha direção, sem perceber minha presença detrás do pinheiro em que me escondia. Quando a vi ali tão próxima, linda e pequena como um manó, meu coração se enterneceu e tive vontade de abraçá-la. Lembrei-me imediatamente de Lísia e Sarka. Comecei a balbuciar, com lágrimas nos olhos:
_Linda! É tão linda!...
Tomada por sua graciosidade, a chamei baixinho:
_Mathuanka!... Mathuanka!...
Ela olhou para mim e parou. Ficou ali observando-me com estranheza, como eu mesma fazia quando criança, quando encontrava um vampiro. Sem querer assustá-la, a convidava chamando levemente com as mãos:
_Venha, Mathuanka!... Não tenha medo, não vou lhe machucar!... _argumentava eu em falsete.
Neste momento a jovem mãe se aproximou chamando a pequenina. Ao me perceber, teve um sobressalto, apontou o dedo em minha direção, gritou e me delatou:
_Aaaaahhh!!!... Mulo! Mulo! Mulo!...
Mais que depressa um dos homens acorreu. Tão logo me viu, estacou e arregalou os olhos. Desembainhou então uma pistola da cinta e apontou-a para mim, vociferando ameaças em sua língua. Sua reação era um misto de medo e agressividade que me assustava. Seus olhos saltavam e seus bigodes tremiam. Percebendo que o melhor seria bater em retirada, deslizei para detrás do pinheiro e corri para me embrenhar na floresta. Ele então disferiu um tiro que tirou lascas da pobre árvore. Teria me acertado se eu insistisse em permanecer lá.
Corri sem parar, até não conseguir mais ouvir as ameaças do furioso cigano. Meu coração batia acelerado e veio-me a vontade de chorar. O que eu havia me tornado?... Que espécie de bicho eu era?... Caminhei absorta em minha culpa, até deparar-me com um córrego que já conhecia, devido à minha nova vida selvagem. Suas águas ainda não estavam de todo congeladas, por isso ajoelhei-me à sua margem para poder olhar meu próprio rosto, o que não fazia há muito tempo. O que vi estarreceu-me!... Eu era branca como a própria neve, quase azul!... Meus olhos tinham um aspécto estranho, parecíam vítreos e seu branco estava avermelhado. Meus cabelos estavam desgrenhados e cobertos de neve, e meus lábios estavam ressecados e sem cor, como os de um morto. Desesperada, levei as mãos ao rosto e começei a chorar.
_Eu sou uma assombração!... Eu sou uma assombração!...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

FERA




















Embrenhei-me na floresta a partir desse dia. Queria estar o mais distante possível dos pastores. Um misto de medo e culpa me invadia. Eu era a criminosa, eles os meus carrascos. Não lembro o quanto tempo corri, mas me afastei o suficiênte para desconhecer completamente a região onde de me encontrava. Parei e descansei. Não demorou para que o cheiro do leitão me voltasse à memória. Que inferno! Eu estava faminta e sequer sabia caçar. Olhei em volta para ver se encontrava arbustos com frutinhas. Nada! A fome me assolava. Só não era mais forte porque não vinha acompanhada de fraqueza. Foi quando percebi a força do sangue. Não fosse ele, talvez tivesse desfalecido.
Conclui então que deveria continuar caminhando, pois talvez encontrasse um animal qualquer. Ainda estava assustada pela perspectiva de ser caçada, por isso minha mente já refletia sobre como consumir o animal. Beber seu sangue simplesmente seria me delatar. Deveria então comê-lo cru, como uma fera. Mal terminara de pensar assim e surgiu, a alguns metros à minha frente, sáido detrás de uma moita, um lebrão. Era imenso! A despeito de minha ansiosa fome, parei e fui-me abaixando, observando-o. Queria pegá-lo da melhor maneira. Então pensei quase como numa brincadeira: "_Eu quero você!... Você é meu, meu lebrão!... Fique ai parado... deixe eu pegar você!...". Estranhamente fui pensando isso repetidamente. Percebi então que o lebrão sentou e permaneceu imóvel, como se obedecesse aos meus pensamentos. Pé ante pé, me aproximei dele. Quando cheguei bem perto, agachei-me e o acariciei. Ele fechou os olhos, aceitando minha carícia. Vendo-o passivo e entregue, tomei-o nos braços. Era grande e pesado. O beijei e acariciei. Olhei em volta e o levei comigo para detrás de uma moita grande, à meio caminho, à minha direita. Senti seu calor, sua pelagem macia e seu coração batendo forte. O beijei, para me despedir dele e fazê-lo sentir que não o matava por mal. Com um golpe muito rápido e forte, quebrei seu pescoço, creck!... O corpo dele amoleceu. Como uma loba faminta, dei a primeira mordida e começei a rasgar a pele.
O lebrão foi minha primeira presa, viriam outras mais. Porém, nem sempre tinha sorte _e mais! _possuia um poderoso inimigo: o sol!... Muito embora seja raro ele aparecer no outono, as vezes em que sua claridade me pegou de surpresa foram terríveis! Um medo indescrítvel me tomou, como se eu fosse uma criminosa delatada pela luz que vinha do céu, "do trono divino". Minha pele ruborizou e meus olhos se ofuscaram. Procurei então, desesperadamente, a sombra das árvores. Eu era agora isso... uma fera! Uma fera das trevas!

domingo, 10 de abril de 2011

MARIPOSA

























Não tive de esperar muito para o sol se recolher. O outono logo joga suas brumas e dias mais claros são raros. Não demorou para eu poder pôr minha cabeça para fora da gruta, como se fosse um animal selvagem. Sai em meio à tarde cor de chumbo. Penso que devesse passar do meio dia. De fato, eu perdera a noção do tempo. Andei pela floresta, pisando nas folhas secas. Tons amarelos e avermelhados matizavam a vegetação.
Repentinamente, a simples imagem de um bordo com a copa toda vermelha me fez lembrar de papai. Era capaz de ver nós dois nos beijando sob sua sombra, nos escondendo por trás de seu tronco. A lembrança de tudo o que acontecera invadiu minha alma e desabei num choro desesperado. O queria!... Meu coração ardia! Um desejo imperioso de tê-lo novamente me tomou. Decidi, enlouquecida, que iria buscá-lo! Iria tomá-lo de volta para mim! Iria vampirizá-lo para que vivêssemos nosso amor amaldiçoado para sempre! Possuída pela paixão, rumei para o lado onde meu coração dizia estar nosso castelo.
Perambulei como uma criança perdida, derramando um rio de lágrimas, até ser desperta de meu transe pelo cheiro de carne de leitão assada. Lembrei-me então que não me alimentara de nada sólido há mais um dia. Fui seguindo o delicioso cheiro feito um jovem carnívoro desavisado. Por detrás de galhos e folhas secas, vi um grupo de pastores comendo um leitão. Eram quatro ao todo e estavam armados com mosquetes. Um instinto novo me fez concluir que eles não seriam nada amigáveis comigo. Enquanto comiam nacos de leitão com pão e goladas de vinho, conversavam:
_Ele não deve estar longe, deve ser o mesmo que atacou meu cavalo, quando este fugiu na terça passada. _disse um homem forte e rude, de barba e cabelos negros encrespados, ostentando quarenta anos, visivelmente o líder deles.
_Acha que será fácil encontrá-lo? _questionou um sujeito mais baixo, que aparentava ter uns trinta anos, tinha cabelos castanhos e lisos, longos até o fim do pescoço, e rosto que lembrava o de uma águia. A despeito disso, parecia ser calmo e sensato.
_Sim, deve ser um vampiro novo, talvez de algum adolescente idiota! Vampiros antigos não ousam nos atacar. Nem a nós pastores, nem aos ciganos. Eles sabem que seriam facilmente encontrados e mortos. Vampiros maduros preferem as estradas e os viajantes incautos. _explicou o líder.
Ao ouvir isso, cai em mim. Eles estavam ao meu encalço. Iam me caçar como a um maldito animal. Isso encheu-me de ira, quis estraçalhá-los. Porém, um inesperado calcanhar de Aquiles revelou-se para mim, o líder ordenou aos demais:
_Bem, já estamos de estômago cheio, vamos à caça! _e abriu sua bolsa, puxando um cordão com cabeças de alho.
O cheiro do alho já me enjoou, porém, quando ele mordeu um dente, foi como se um gás surgisse das profundezas do inferno! E este gás queimou minha garganta, minhas narinas, meus olhos e meus pulmões! Afastei-me soltando um rosnado sibilante. Atordoada, corri, fugi daquele odor como quem foge do fogo. Meu sofrimento era intenso, pois do peito para cima, tudo em mim ardia. Mal conseguia enxergar, meus olhos lacrimejavam como se eu andasse em meio à fumaça. Por fim, encontrei uma árvore larga e escolhi cair por detrás dela. Tombei de joelhos no chão e dobrei-me para a frente, respirando com dificuldade, quase sufocada. Tudo queimava! Fiquei ali, dobrada, sofrendo, até que pouco a pouco a ardência foi amenizando. Devo ter derramado um rio de suor. Enquanto me recuperava, minha razão também foi voltando e comecei a me censurar: "Como pude ser tão tola?!... É claro que os pastores já estão acostumados aos vampiros. Estes são uma fera exótica, raros o suficiente para deixar marcas bem claras de sua passagem!". Eu de fato ainda não entendia a maldição que me acometia e nem o tipo de vida que ela criava.
Mal melhorara meu estado físico e já comecei a ouvir os gritos dos caçadores:
_Foi por ali, eu vi! Parecia uma mulher! _dizia a voz do sujeito de trinta anos.
Ergui-me reunindo forças e voltei a correr. Ainda me afastando, olhei para trás e vi os homens me seguindo, à cerca de trinta pés de distância, com os mosquetes em punho. O que eu faria?... Foi quando uma inacreditável intuição me veio como um estalo! Sem pensar, olhei à minha direita. Estendi minha mão pálida e as folhas deitadas na terra se ergueram como se um animal passasse correndo. O som de seus passos até ressoaram no solo. Olhei para frente e, já longe, vi os homens irem na direção dos passos ilusórios. Corri morro acima. Havia descoberto meu primeiro poder: o de iludir! como uma mariposa fantasmagórica.

terça-feira, 5 de abril de 2011

TREVAS E LUZ


























Uma luz mansa me acordou. Ela entrava suave na gruta, vinda de fora. Abri os olhos. Estava tranquila, relaxada. Languidamente me levantei e me espreguicei. Uma música ressoava. Pus o rosto para fora da gruta, para ver do que se tratava. Era uma festa. Pessoas pequenas como crianças, trajadas com estranhas roupas coloridas, cantavam e dançavam alegremente. Pelas suas feições, eram adultas. Na verdade, pareciam mesmo anões. "_São manós!" _conclui.

Sai da gruta sem medo, sorrindo. A noite estava linda, estrelada! Dois manós, que pareciam bem jovens, tocavam tambores. Outros dois, um gorducho e baixo e um magrelo e alto, tocavam alaúde. Outro ainda, sorridente e de longos bigodes castanhos, tocava címbalo. Um mais velinho, de barbas brancas, soprava entusiasticamente uma duda. Com os martelinhos, o cimbalista tirava sons que soavam como estrelas que voavam pelo ar, enquanto o fole da duda se inflava e depois soltava seu lindo choro pelos tubos. Todos outros então batiam palmas ritmadas e dençavam aos pares. Lembrei-me dos ciganos.

Absorvidos em sua festa, não ligavam para mim. Olhei então em volta e notei que eles haviam iluminado o local com pequenas tochas. Por detrás delas, nas sombras da noite, sentia toda uma estranha vida fervilhando na floresta. Deixei os festivos manós e fui ver o que encontrava na floresta. A lua cheia iluminava tudo como se fosse quase um Sol noturno. Tudo então tomava uma tonalidade azul-esverdeada. Ouvi então o som de uma cachoeira. Caminhei em sua direção. Começei a ouvir risos e sons de água batendo. Uma pequena, porém forte e linda cascata caía em um lago que eu jamais vira antes. Moçinhas lindas,visivelmente tünders, nadavam e jogavam água umas nas outras. Suas feições era púberes, mas suas orelhas pareciam longas e de pontas finas. Elas se projetavam para fora de seus cabelos.

Continei caminhando à frente e vi um homem de cabeça baixa, sentado sobre um pedregulho. Ele apoiava a cabeça com as mãos, como se estivesse muito preocupado. Fui até ele e toquei em seu ombro. Ele olhou para mim, tinha olhos grandes e castanhos. Eu então lhe perguntei:

_O que houve?

_Não sei... Me perdi na floresta. Não sei mas como voltar para casa. _respondeu.

_Onde mora? _quis ajudar.

_Moro um pouco mais abaixo do morro. Perdi uma de minhas ovelhas. Fui procurá-la e a encontrei. Mas fui atacado por um lobo. Ele me mordeu no pescoço, olhe... _e mostrou-me as profundas marcas de dentes, ainda sangrando.

Toquei de leve em seu ferimento. Vi o sangue na ponta de meus dedos e... finalmente o reconheci!... Era ele, o pastor que eu havia matado. O reconheci pelo cheiro e pela testura de seu sangue. Tremi da cabeça aos pés. Fiquei fria, gelada. Minha cabeça começou a rodar. Levei a mão à testa e ainda o ouvi falar:

_Moça, está bem? Moça! Está me ouvindo?...

Tudo rodou... Minha vista escureceu... Quando abri os olhos, estava deitada na caverna. Fiz mensão de me erguer, mas uma nesga de luz solar banhava o chão. Como se me defendesse de uma cobra, me encolhi em um canto. Não entendia! Eu temia o sol! Temia sua claridade, temia seu calor, temia-o, enfim! Fiquei então ali, encolhida, até ele ir dormir.

sábado, 2 de abril de 2011

NOITE




















Deixei o corpo do pastor ali, à beira do riacho, e me enfiei na floresta. Caminhei por horas, como quem simplesmente passeia num dia ensolarado. Meu pescoço e pulsos não doíam mais, nem os sentia mais inchados. Meu corpo estava aquecido por dentro e suportava o frio da noite outonal como se fosse o de uma fresca manhã de primavera. Sentindo-me bem, pela primeira vez depois de várias semanas, eu cantarolava feito uma menina ingênua. Pela primeira vez, maravilhei-me com os fachos de luz da Lua entrando pelas frestas das copas dos pinheiros. Antes só vira os do Sol fazendo isso. O piado de uma coruja branca ressoou e eu a vi planar e depois bater levemente as asas, passando sobre mim. Achei lindo!... Ouvi então o som de leves passos pisando galhos e folhas secas, à minha esquerda. Voltei-me para olhar e vi a silhueta de uma pequena raposa, fazendo sua ronda sem se importar comigo. Os passaros noturnos cantavam suas melodias bizarras. Os morcegos passavam rápido sobre minha cabeça, soltando seus gritinhos finos.

A bruma então começou a fechar. Deixei ela me envolver, mergulhei nela. Tudo à minha volta era névoa. Eu respirava névoa. Era como se floresta estivesse sob um imenso dossel, de onde caíam véus brancos, semitransparentes, que cobriam a tudo. E eu brincava em meio a estes véus. Procurando, encontrando, me escondendo... Esticava os braços, abria e fechava as mãos para "pegar" na névoa. Ria, me divertia... Realizava meu desejo de criança de me perder na floresta e ficar o tempo todo brincando. Assobios sombrios e sons fantasmagóricos me cercavam. Não tinha medo deles. Tinha-os como crianças que brincavam comigo. Brincavam de esconder.

_Miiiklos!... Kataliiin!... Eu vou achar vocês!... _dizia em falcete, olhando em volta, lembrando de quando brincava com os filhos de Marton. E era como se eles estivessem à minha volta, se escondedo, me chamando. Parei então de brincar dizendo baixinho: _Ainda vou achar vocês!...

A noite é tão estranha... e tão linda!... Continuei caminhando, cantarolando, às vezes rindo sozinha, feito uma tola. Não temia fantasmas, feras, duendes... vampiros!... Eu era mais um ser noturno e a consciência disso me dava toda uma calma satisfação. Enfim havia algum alívio no inferno. Como alma perdida não temia mais um monte de coisas. Toda uma beleza há muito escondida era a mim revelada agora. E eu sentia paz... Finalmente sentia paz!...

Porém, a paz acabou por trazer o sono. Foi quando me dei conta de que não descansava fazia muito tempo. Das noites mal dormidas ainda no castelo de tio Stiván, até aquele momento, meu corpo não tivera o merecido repouso. Foi quando encontrei uma acolhedora gruta. Entrei nela. Era seca e não tinha insetos. Deitei no chão, fechei os olhos, dormi... morri.