domingo, 27 de fevereiro de 2011

PORCOS





















Minhas suspeitas foram confirmadas em uma manhã. Pouco depois do desjejum, ouvi o som de cavalos chegando. Instintivamente fui até uma janela, para ver quem chegava. Sim, lá estava ele, Traian, com sua figura sórdida e pálida. Mas sua presença não me causou tanta surpresa. Meu sangue ferveu ao reconhecer quem chegava ao seu lado: conde Vladmir!... Sempre trazendo consigo o grotesco Ferencz.
O que eles queriam era o que mais me intrigava, mas tudo ficou logo muito claro. Tio István os recebeu sorrindo largamente, deixando claro que aquele não era um primeiro encontro. Eles estavam juntos, unidos, em uma mesma empreitada. Esta consistia em chantagear papai. Tio István, me teria como refém, conde Vladmir, sabendo de nosso segredo, que lhe fora delatado por Traian, faria a chantagem. Papai seria obrigado a me casar com Ferencz, concedendo a conde Vladmir a descendência nobre que tanto almejava. Descendência que teria direito sobre todo o condado de Csik.
O conde validaria dessa forma o título que lhe fora outorgado pelo príncipe. Tio István, por sua vez, alcançaria seu objetivo de receber um bom cargo. Convertera-se apenas para angariar privilégios políticos, como fizeram muitos nobres traidores. Quanto a Traian, com certeza receberia o cargo de xerife, além de terras, é claro.
Caso papai não aceitasse a chantagem, seria fácil acusá-lo de incesto e loucura para o príncipe. Este era protestante, como tio István e conde Vladmir, portanto lhes daria total crédito. Além do mais, não era estratégico ter católicos com tanto poder. Ainda mais um católico emperdemido, um rebelde székely, como papai. Se fosse provado o incesto, seria fácil encarcerá-lo em uma fortaleza, ou encerrá-lo em um mosteiro. Possivelmente, conde Vladmir ganharia o título de marquês como prêmio e o poder total sobre Csik, ajudando o príncipe a manter os székelys em seu devido lugar.
Imaginei então como tudo seria feito, no caso de haver acusação. Traian seria o acusador, tio István entregaria a "prova" _eu! _e tia Mónika, evidentemente, se encarregaria da parte mais delicada, a de "mostrar" a prova. Fiquei imaginando como ela faria. Não acredito que seria violenta, como mamãe foi com Mila. Certamente me faria dormir. Eu deveria ficar atenta a tudo o que ingerisse e à todas as visitas inesperadas, fossem de cavaleiros, ou damas que jamais vira antes. Será que o príncipe enviaria sua própria esposa? Isto é, se ele possuir uma esposa. Eu sinceramente não duvidava de absolutamente nada, apenas me conscientizava de que precisava fugir. Teria de fazer isso o quanto antes!...
O sórdido encontro durou toda a manhã. Tio István convidou seus "abutres" para o almoço. Como não fosse tolo, comeu com seus convidados em sua sala. Tia Mónika tentou manter a naturalidade à mesa, na sala de jantar, onde apenas nós duas comemos naquela tarde. Talvez esperasse que eu lhe fizesse perguntas, mas mostrei a ela que não era a menina tola que imaginava. Limitei-me a comer as fatias de porco e beber o vinho, silenciosamente, imaginando estar bebendo o sangue e mastigando a carne dos traidores... Prometi a mim mesma que eles seriam o meu pasto. Aquela vara de porcos!... Seriam todos o meu pasto!

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A ANTIGA SERPENTE

























Detalhe de Alegoria da Primavera, de Botticelli.



A vida com meus tios era uma velada prisão. Toda manhã eu tomava a sopa com eles, debaixo de olhares vigilantes. Meus primos já estavam todos casados, o que piorava minha situação. Eles tinham todo tempo do mundo para observar cada passo meu. De fato, eu não podia me mover para lá, ou para cá, sem que os criados comentassem baixinho entre si, ou me seguissem com os olhos. Comecei a perceber que eu não era apenas fonte de desconfiança, eu era um tema recorrente em suas bocas. Pensei comigo "_Será que eles sabem?!"... Um bela manhã, recebi a resposta. Uma criada limpava o chão à porta de meu quarto. Mal sai, ela sussurrou alto o suficiente para eu ouvir:
_Vampira...
A acusação crivou-se sobre meu coração como uma faca afiada. Ela sabia! Sim, ela sabia! Sim, todos ali sabiam sobre meu incesto. Era o único pecado venal que poderia condenar minha alma ao vampirismo. Porém, se eles sabiam... quem lhes contou? Papai jamais se delataria. Primeiro porque não seria louco, segundo porque observei sua carta nas mãos de meus tios. Era curta e concisa, bem no seu estilo. Não era nenhuma confissão.
Sim, alguém lhes contou, mas quem quer que fosse, não contou à minha mãe. Sua atitude de profunda estupefação, quando nos flagrou, deixava evidente que ela fora pega de surpresa. Sendo assim, nossas criadas também não foram, pois contariam à mamãe. Além do que, todas _tanto as criadas, quanto mamãe _estavam duas vezes ocupadas, devido à gravidez de Greta. Quem contou era disciplinado o suficiente para guardar este segredo e usá-lo de forma estratégica. Quem contou... só poderia ser um homem!... Pior, um cavaleiro! Um guerreiro ardiloso. Alguém que sabe atacar sorrateiramente, como uma serpente.
Em minha mente se materializava apenas uma imagem: Traian!... Efeminado, disciplinado, estratégico!... Sim, só poderia ser ele! Ele nos viu, nos flagrou, em algum momento fervoroso, porém tolo, na estrebaria. Enquanto nossos olhos se encontravam cerrados, absortos em beijos. Fomos flagrados por ele, como o animal pequeno e jovem cai nas garras do experiente predador. E como tal, ele soube manter-se em silêncio. Soube ver sem sequer gemer. Soube conter seu ímpeto, como faz uma velha cobra. A mais antiga serpente...

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O SEGUNDO CÍRCULO DO INFERNO




















O segundo círculo dos luxuriosos, por Delacroix.



Papai era um homem decidido, e exatamente por isso, eu sabia que meu destino em breve seria definido. Ele poderia ficar comigo até o fim de seus dias, ou poderia mandar-me para algum outo lugar. Infelizmente, a segunda possibilidade foi a que vingou. No dia seguinte á morte de mamãe, ele me chamou em sua sala e sentenciou:
_Não podemos mais continuar como estávamos, Irina. Você irá morar com seu tio István. Já mandei prepararem suas coisas, você irá ainda hoje.
Eu sabia que não adiantaria contestar. Simplesmente baixei minha cabeça e chorei minha condenação. Parti no coche depois do almoço, vendo frei Emil, Andrei, Anna, Mihail e Nicolae se distanciarem pouco a pouco de mim. Anna chorava muito. Frei Emil a amparava, mas chorava tanto quanto ela. Andrei derramava lágrimas em silêncio e meus irmãos se detinham em me ver partir, com os olhos vermelhos. Papai não desceu para se despedir de mim. Eu o entendia e não o condenava.
Mergulhei na bruma do outono. As árvores secas me acenavam, dando-me boas vindas no Inferno. A viagem até o solar de tio István era como descer os círculos de Dante. Mas eu estaria feliz em sofrer os ventos furiosos do segundo círculo _o dos luxuriosos _se papai estivesse comigo. Passar a eternidade com quem se ama, mesmo no Inferno, é o paraíso. Se me pusessem diante do Senhor, com toda sua glória, eu lhe diria:
_Manda-me para o Inferno, pois quero a quem amo!
Quando o coche parou diante do solar, a noite já havia descido de todo. Desci e o cocheiro me acompanhou até a entrada. Os guardas me reconheceram e abriram o portão. Entrei e fui recebida com uma estranha frieza por meus tios. O cocheiro entregou a tio István uma carta de papai, despediu-se rapidamente e em seguida partiu. Meu tio leu a carta em silêncio. Era curta, tinha poucas linhas. Ao terminar, olhou-me sério e disse:
_Sendo assim... entremos! _disse acenando o rumo da porta.
Tia Mónika gritou chamando os criados:
_Tamás! Miklos!...
Os dois rapazes apareceram rapidamente. Tia Mónika então ordenou:
_Levem a arca para o quarto de hóspedes!
Os dois rapazes carregaram minha arca e tia Mónika me puxou pelo braço:
_Vamos, Irina! _disse em um tom frio, como de um carcereiro cauteloso.
Se um pai entrega sua filha aos cuidados de outro alguém, até mesmo da Igreja, é porque em algum lugar reside a culpa e o erro. As pessoas sabem disso. Ou você é adúltera, ou é incestuosa, ou é lesbiana, ou já foi deflorada. Algum destes pecados você cometeu. Eu cometera dois... e ainda estava disposta a cometer mais três e quatro!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ANJO CAÍDO


























Durante parte do inverno, toda a primavera e todo o verão, eu e papai vivemos um paraíso. Nossa única preocupação era a de sermos descobertos. Isso poderia acontecer se fôssemos flagrados, ou se eu engravidasse. Para evitar flagras, escolhíamos as horas e lugares certos para nossos encontros. Para evitar que eu engravidasse, praticávamos a sodomia em meus dias férteis. Anna me explicara que se a mulher evitasse ser preenchida dez dias antes da menstruação, se salvaria da gravidez. Como ela só engravidou após sua união com Ignaz, acreditei nela. Porém, tive ainda a curiosidade de perguntar como deteria o desejo sexual nos dias férteis. Ela respondeu-me que a mulher poderia continuar deitando-se com o homem nos dias férteis, desde que eles praticassem a sodomia. Perguntei-lhe se era doloroso e ela respondeu-me que se o homem fosse carinhoso e lambesse o ânus, untando-o, não apenas o membro entraria fácil, como a mulher experimentaria um intenso prazer. Tudo isso ela me explicou quando me revelou o que realmente acontecera com Mila. Soube da verdade apenas aos 12 anos.
Assim sendo, eu e papai nos entregávamos aos pecados de Sodoma. Minhas nádegas sempre foram proeminentes e sedutoras, como as de Vênus, característica que herdei de minha mãe. Oferecia então meu traseiro a papai, empinando-o, seja apoiada na parede, seja de quatro, na posição das lupas romanas. Por vezes, papai me sodomizava estando eu deitada de lado, o que era intensamente prazeroso.
Eu tivera sorte por papai já ser hábil na prática da sodomia. Ele segredou-me que passou a praticá-la muito com mamãe, depois que nasci. Mamãe começou a ter problemas a partir do parto de Mihail. Quando nasci, ela quase morreu. Madame Dorka teve de abrir seu ventre com uma faca para me retirar, pois ela não sobreviveria ao parto normal. A velha parteira então deixou claro que ela não resistiria a outra gravidez. Por isso, recomendou a papai que adotasse a prática sodomista. Segundo papai, mamãe de tal forma se habituou à nova prática, que passou a apresentar um fogo quase insaciável, procurando-o mesmo durante o dia. Suas relações, no entanto, foram comprometidas por sua conversão ao luteranismo. Ela não aceitava mais ser sodomizada, postulando ser esta prática pecaminosa e contrária à lei de Deus e da natureza. Não demorou para que dormissem em quartos separados. Quando papai me contou isso, me enchi de revolta, pois pensei o quanto irmão Sandór deveria estar se deliciando com o traseiro dela.
Para ressarcir papai desta afronta, entregava meu traseiro à hora que ele quisesse, o quanto quisesse. Isso para além da felação e da cunilíngua que praticávamos à farta. Toda nossa vilúpia, no entanto, acabou por nos deixar descuidados. Uma manhã, estávamos na sala de reuniões, com a porta perigosamente aberta. Eu o abraçava e beijava completamente nua, quando mamãe entrou. Só notamos sua presença quando ela deixou a bandeja com frutas cair, se estatelando no chão. Ao que parece, queria fazer uma surpresa a papai, para se reconciliarem. Olhamos assustados, ela não conseguia falar. Seu rosto, lívido, fazia uma careta de choro desesperada. Ela movia a cabeça negativamente e levava as mãos à cabeça, não querendo acreditar no que via. Foi quando começou a balbuciar:
_Não... Não... Não...
Papai tentou contê-la:
_Eva... Eva venha cá... _dizia estendendo-lhe a mão, desconsertado.
Mamãe não o ouviu mais. Virou-se e correu desabaladamente. Papai a seguiu, mas foi em vão. Absolutamente atordoada, mamãe tropeçou ao descer as escadas, rolando em seus degraus até atingir o chão. Quando papai foi socorrê-la, já estava morta. Quebrara o pescoço e ainda batera fortemente com a cabeça. Escorria sangue atrás de sua cabeça e seus olhos estavam vidrados.
Seu enterro se deu ao meio da tarde, naquele dia sombrio de outono. Apenas eu e Greta não comparecemos. Ela em função de sua gravidez. Eu, por ter-me trancado no quarto. Porém, ainda acompanhei parte do ritual, olhando da janela. Foi revoltante ver irmão Sandór recomendar sua alma. Papai estava transtornado, por isso aceitou o enterro protestante. Mihail chorava como uma criança, o que dilacerava meu coração. Não derramava lágrimas por minha mãe _de quem não esquecia a traição _e sim por Mihail, a quem, de certa forma, fizera sofrer. Nicolae derramava lágrimas em silêncio, como era seu feitio. Anna, Klara, Arnira e a velha Erzi, recitavam seus terços em prantos. Os cocheiros Theodor e Romeo, assim como Andrei, rezavam baixinho _inconsoláveis! _em romeno, sua língua materna. Tinham profundo respeito e carinho por mamãe, que era romena. Ela jamais falava em magiar com eles, sempre em romeno. Frei Emil consolava papai. Junto ao detestável irmão Sandór, havia seis "irmãos" e "irmãs" luteranos de mamãe.
Após o enterro, papai foi levado para dentro, amparado por Erzi e Anna. Embora me angustiasse vê-lo sofrer, não fui consolá-lo. Sabia que minha presença só o faria sofrer mais, pois eu fora a culpada do que acontecera. Resolvi então caminhar. Afastei-me do castelo, vagando à sombra das árvores que se desfolhavam amareladas, sob o céu pálido. A bruma desceu e mergulhei nela. Não me arrependia de nada, mas não negava minha culpa. Era um anjo caído.