quarta-feira, 31 de agosto de 2011

LÁBIOS CAÍDOS
















A Grande Odalisca, de Ingres.


Como Ion havia dito, o espião apareceu... da maneira mais inusitada que eu podia imaginar. Oanna preparou uma grande festa, com direito à toda fartura de comida, bebida e mulheres. Todas as meninas estavam impecáveis. Oanna mandou chamar seu alfaiate preferido, Vasile, para preparar meu vestido. Pequeno, franzino e efeminado, aparentando seus 40 anos, Vasile chegou escandalizando todo o ar que encontrava pela frente. Ouvi suas ruidosas risadas, junto com os das criadas e Oanna. Desci para ver que balbúrdia era aquela e me deparei com sua minúscula e divertida figura, falando pelos cotovelos, em frente à porta. Sua tagarelice só foi estancada por minha presença, pois ele pareceu congelar quando me viu. Permaneceu em silêncio alucinado, fitando-me sem mover os olhos. Oanna e as criadas se impressionaram com sua atitude e voltaram seus olhares para mim também. Quando finalmente conseguiu falar, exclamou deslumbrado:
_Oanna!... Mas que jóia é esta que você esconde em seu castelo?!...
_É... Vasile, esta é Irina...
Vasile adentrou a sala, quase na ponta dos pés, parou diante de mim e pegou-me a mão (que era quente, demonstrando que ele não era um vampiro). Curvou-se então levemente e me cumprimentou:
_Encantado!...
Não resisti a tão caricata afetação daquele pequeno bobo e soltei um leve riso.
_Que sorriso lindo! _elogiou ele, erguendo a mãozinha, querendo apalpar-me o rosto.
Respondi a seu elogio baixando o rosto. Ele o acariciou e sentiu com sua pequena mão. Fechou então os olhos e, como se tivesse provado um vinho inigualável, diagnosticou:
_É como pêssego!...
Abriu então os olhos, tocou meu rosto com ambas as mãos e exultou:
_Deus é arrebatador quando nos dá provas de sua perfeição!
Foi desta maneira que começei uma longa amizade, com um dos melhores amigos de toda a minha vida. Nossa simpatia mútua foi instântanea, de forma que mesmo as longas horas que passei no quarto, parada, para tirar medidas, experimentar tecidos e pedaços de um futuro vestido, não pareceram mais que meros minutos. Tudo o que Vasile dizia era engraçado, tudo o que fazia exalava alegria! Sem falar em sua irrefutável dedicação. Fora o vestido em si, ainda arranjou meu penteado e ajudou-me a escolher as melhores jóias para a ocasião. Escolhi para a festa uma linda gargantilha, onde reluzia uma pedra de rubi incrustada. Esta, fora presente especial de Oanna.
Vasile já me dava os últimos retoques, quando invadiu-me as narinas um sedutor aroma.
_Que aroma é este? _indaguei capturada.
Cheio de misterioso requinte, Vasile respondeu:
_Acho que visitas ilustres chegaram...
Quando desci à sala, com Vasile levando-me pela mão, todos os presentes esqueçeram a música e olharam para mim. Ao centro do recinto, ao lado de Oanna, estava um homem de tez muito branca, que usava uma longa barba mais branca ainda, e se vestia à moda turca. Sua imagem inspirava respeito e admiração. Ele me olhou como que possuído e, depois de me contemplar em silêncio por alguns longos segundos, exclamou, em um romeno carregado de sotaque turco:
_Já vi muita beleza em tua casa, ó Oanna... mas... o que tenho diante de meus olhos... é uma jóia!...
Vasile levou-me então até o deslumbrado turco e passou minha mão para ele. Ele tomou minha mão, beijou-a e em seguida curvou-se, fazendo uma reverência em turco, cuja única palavra que entendi foi "Ala". Seus criados, também vestidos à maneira turca, o seguiram no reverente cumprimento.
Abrindo um largo sorriso, Oanna finalmente se aproximou e me apresentou ao ilustre estrangeiro:
_Irina, quero lhe apresentar o sultão Süleiman, o Magnífico!...
Surpreendi-me. Então aquele era o homem para quem János Sigismond se curvara! Jamais imaginaria um adversário tão admirável! Abaixei-me levemente e o cumprimetei:
_Encantada!
Após este momento de deferências e reverências, a festa recomeçou. Oanna nos conduziu para o lugar cativo do sultão, arranjado à forma oriental, com muitas almofadas sobre o chão, que estava forrado com um belíssimo tapete persa. Neste lugar o estranho aroma inundava o ar como nunca! Ele saía de chaleiras que soltavam vapores que chegavam a enevoar o ambiente. Os turcos bebiam um chá negro que era despejado destas chaleiras. Mal sentei, um dos criados turcos imediatamente me ofereceu uma bandeja com uma pequena vasilha, contendo o espesso chá negro. Era dele que saía aquele aroma encantador. Agradeci e aceitei a quente e fumegante vasilha.  Porém, ao sorver seu conteúdo, decepcionei-me com seu amargor e fiz careta. Oanna sussurrou:
_Irina, seja educada....
Estava pronta a lhe dar mais uma resposta mal criada, quando uma ideia veio-me de repente à mente.
_Eles trouxeram açúcar? _perguntei.
_Sim, o sultão me presenteou com um generoso carregamento. _respondeu Oanna.
_Peça para uma das meninas trazer, por favor. _pedi fazendo careta.
Oanna chamou Sanziana e, após uma curta espera, o açúcar chegou em um pequeno recipiente. Tomei da colher e adocei a bebida quente até ficar do meu gosto.
O sultão riu ao ver-me fazendo isso e disse algo para mim, em turco. Oanna traduziu:
_O sultão disse que quem gosta de tomar o kahve com açúcar é sua neta, de cinco anos.
_Diga a ele que ela é uma menina sábia. _respondi virando a vasilha nos lábios.
No entanto, quando o fazia, meus olhos não puderam deixar de avistar uma figura familiar, que tocava flauta descontraidamente entre os demais músicos: Dimitru!... Fiquei de lábios caídos. Uma voz dentro de mim delatou imediatamente: "_Ele é o espião!".
A festa seguiu alegre, com Dimitru simplesmente fingindo não me conhecer. Fiquei junto ao sultão, observando, de longe, seus mínimos atos. Em determinado momento, em que os músicos deram uma pausa, o que eu esperava aconteceu. Oanna levantou-se, pediu liscença ao sultão e dirigiu-se para junto dos músicos. Sequer deu atenção aos outros, seu alvo direto... foi Dimitru. Disse-lhe algo em tom baixo, próximo ao ouvido. Ele não olhou para ela, apenas meneou a cabeça positivamente e se retirou. Os outros músicos foram em direção à cozinha. Apenas ele se postou sozinho e isolado ao pé da escada, claramente esperando. Logo Oanna _que fora dar algumas instruções à Dorotheea _voltou até ele e ambos subiram. E eu sabia que eles não teriam um encontro amoroso.
Esperei ainda um momento, antes de pedir licença ao sultão, subir e ir escutar a conversa dos dois. De fato, ao encostar o ouvido na porta da sala particular de Oanna, notei que o tom da conversa não era dos melhores. Ouvi Dimitru dizer:
_Apenas vejo cavaleiros indo e vindo para lá e para cá na floresta. Os ciganos dizem somente que é uma guerra entre senhores e que não querem se meter. Ninguém me diz mais nada.
_Você perambula por dois condados e é só isso que tem para me dizer? _reclamava Oanna.
_Não sei de mais nada. Mas se isso for importante, a guerra é entre magiares! _respondeu Dimitru.
_Magiares?! _surpreendeu-se Oanna.
_Sim. Todos os cavaleiros que vi falavam magiar e os ciganos confirmaram que a contenda era entre os magiares.
Neste momento, veio-me um estalo! Magiares?!... A imagem de papai surgiu imediatamente em minha mente, meu coração apertou. Afastei-me da porta, já havia ouvido o suficiente. Como podia estar me perdendo em luxúria, enquanto papai precisava de mim? Senti tê-lo traído! Censurei-me! Desnorteada, fui para o pátio. Fiquei chorando e olhando para as estrelas. Uma lua crescente aumentava minha aflição. Não demorou para que o céu se enchesse de nuvens enferrujadas e os trovões ressoassem. A primavera terminava, um verão infernal prometia chamas! Com um relâmpago cortando minha alma, a tempestade desabou. Cai de joelhos sobre o chão. Minhas lágrimas se perdiam na chuva.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O EXÉRCITO SECRETO





















Uma vez unidas, Oanna começou a me revelar seus segredos. Uma noite, chamou-me e disse que iria me apresentar um exército muito especial. Saímos do castelo, como meras mortais, e adentramos na floresta até o início de um ramal. Sozinhas, de pé, iluminadas apenas pela lua cheia, esperamos por aqueles que Oanna chamou de "exército secreto".
_Não se assuste quando eles chegarem, Irina, eles são leais a mim, dei-lhes meu sangue.
_Quem são? _investiguei.
_Vampiros muito antigos, oriúndos de terras hoje inundadas pelo mar. Vagaram pela terra como bestas durante milênios, até que meu antigo mestre os encontrou e adestrou.
_Quem é seu mestre?
_Um dia você vai conhecê-lo, Eduard de Lancaster.
_É inglês?
_Sim e no momento, infelizmente se encontra em sua terra, longe demais para que possamos visitá-lo.
_Não podemos visitá-lo no mundo dos mortos?
_Não, ele bloqueou qualquer acesso que eu pudesse ter a ele, disse que não quer ser perturbado por minha impertinente presença por pelo menos um século.
Não pude conter o riso. Porém, um ligeiro tremor do solo, podou-me o senso de humor. Os relinchos lúgubres do que pareciam ser cavalos enlouquecidos, começaram a surgir pouco a pouco do interior da floresta, assim como o som de muitos cascos. Como uma tempestade que se aproxima, o ruído foi aumentando, assim como o tremor. De repente, como bizarros vagalumes, pontos vermelhos em parelhas começaram a despontar em meio a escuridão. Com sua aproximação, as formas de cavalos e medonhos cavaleiros de pele cinzenta foram se definindo. Eles traziam chapéus de abas largas sobre as cabeças e longas capas sobre seus ombros. Quase não acreditei que fossem frear quando pararam diante de nós, parecia mesmo que iam nos esmagar sob os cascos de seus corcéis. Eram quatro vampiros imensos, grandes e fortes como ursos. Seus rostos rudes traziam dentes longos e pontiagudos se projetando para fora dos lábios, seus olhos vermelhos brilhavam como brasas na escuridão. Reparei nos cavalos e noteis que seus olhos estavam com as pupilas reviradas, mostrando apenas o branco. Estavam como que possuídos.
_Te saudamos, ó Oanna! _disse o que parecia ser o líder deles, tirando o chapeu e curvando a cabeça. Sua voz era soturna e muito grave, como um trovão. Seu sotaque era muito estranho. Todos os outros cavaleiros repetiram seu gesto.
_Grata, Ion! _respondeu Oanna altivamente.
Estranhando minha presença, os outros cavaleiros olhavam para mim como feras que têm seu território invadido. Oanna, no entanto, apressou-se em me apresentar:
_Antes que eu me esqueça, esta é Irina, minha pupila e protegida. Ela é uma de nós. Vem de uma família de alta estirpe, possui palavra e honra. Podem confiar nela.
_Te saudamos, Irina! _saudou-me Ion, da mesma forma como fez à Oanna.
_Grata por conhecê-lo, bravo Ion! _respondi.
Ao verem o gesto de seu líder, todos os outros também me saudaram. Oanna então se apressou em perguntar ao seu terrível criado:
_Há paz em minhas terras?
_Sim, Oanna. Apenas encontramos alguns salteadores, mas já fizemos deles nosso repasto. _respondeu estendendo a mão a um de seus monstruosos colegas, que imediatamente mostrou um colar com quatro crânios, ainda manchados de sangue.
Oanna sorriu com satisfação e recomendou-lhe:
_Ótimo! Observem também se não há animais ferozes rondando o rebanho dos pastores, não quero que eles percam seus cordeiros e suas vidas.
_O último lobo que vimos, já está em nossos estômagos! _assegurou Ion.
_Perfeito! Vou abrir o castelo ao povo semana quem vem. Na última vez, não recebi queixas, apenas pedidos corriqueiros e presentes.
_Demos cabo de todos os arruaceiros, como você pediu, Oanna. O assassino do oleiro já nos serviu com seu sangue. O farejamos até seu esconderijo, em uma cabana no meio da floresta. Bebemos todo seu sangue e o devoramos até a medula. Aqui está o dinheiro que ele roubou do oleiro... _e estendeu uma pequena e rude sacola.
Oanna pegou a sacola, abriu-a e verificou o dinheiro. Sorriu e em seguida agradeceu:
_Muito bom! A velha Alina gostará de saber que seu marido foi devidamente vingado e que o dinheiro roubado foi devolvido.
O vampiro grandalhão sorriu com o reconhecimento de sua ama, mostrando suas presas assustadoras. Oanna então questionou:
_E meu informante, por que não está aqui?
_Ele está no norte. Mandou avisar à senhora que se apresentará em seu castelo ainda na primavera.
_Assim espero. Da última vez, ele apareceu somente no meio do verão, aquele malandro. Desta vez, se ele não se apresentar até o fim da semana que vem, pode trazê-lo amarrado sobre seu ombro.
_Com toda certeza, senhora. _respondeu o gigante, com um leve riso sarcástico nos lábios, mostrando suas assustadoras presas.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

APRENDIZADO





Após uma noite subindo pelas paredes, Oanna me ensinou a mergulhar na mente de outras pessoas. Não é tão fácil. Tem-se de sincronizar sua respiração com a respiração da pessoa cuja mente você deseja invadir. Levei três dias até conseguir sincronizar minha respiração com a de Sanziana. A dificuldade era aumentada em virtude de eu ter de fazer isso sem que ela percebesse. E ao conseguir, minha frustração foi imensa, pois constatei que o fluxo mental de uma pessoa é extremamente confuso. Trata-se de uma tempestade de falas contraditórias, que se entrecortam, duas, três, quatro ao mesmo tempo. O que a mente verbaliza em seu tagarelar profuso é digno de ser chamado de loucura, não passa de uma conversa de lavadeiras! Quando me queixei disso à Oanna, ela me explicou:
_Sendo assim, centre sua atenção no que a pessoa sente _no seu coração! _é isso o que realmente importa. Este é o centro de sua alma, o seu sentir. Perder tempo com a fala mental é querer perder o próprio juízo.
_Percebi... _concordei sem contestar.
Segui então suas instruções e percebi que, centrando-me no coração, podia divisar, numa linha lógica, a sucessão sinuosa de sentimentos de uma pessoa, decifrando o que ela estava pensando. 
Num outro dia, Oanna me ensinou:
_Quer ter servos leais, que estejam sob seu total controle?... Dê a eles o seu sangue... para que bebam!
_Beber o meu sangue?... Um sangue amaldiçoado!
_Sim, exatamente isso! A maldição os tornará seus escravos. Você não apenas reinará sobre sua vontade, como poderá mesmo ver com os olhos deles, saber onde estão, o que fazem e o que estão pensando.
_Quer dizer que não teria o trabalho que tive para ler as mentes, se suas criadas tivessem bebido meu sangue? Por que não me disse isso antes? _irritei-me.
_Deve aprender o mais difícil primeiro. _pontifiocu Oanna.
Em seguida continuou:
_Todos os vampiros que estão sob minhas ordens beberam de meu sangue, por isso me obedecem cegamente. Mas veja, faça isso apenas com as mentes mais fracas, jamais com mentes fortes.
_Por que? Não seria mais sábio ter os mais fortes como servos leais? _questionei.
_Os mais fortes jamais serão seus servos. Ao dar seu sangue a eles, abrirá sua própria mente ao poder deles. Eles é quem verão com seus olhos e saberão onde você está e o que faz e pensa.
_Compreendo... _ponderei.
Oanna também me ensinou a conversar apenas com os pensamentos:
_Tudo consiste em reconhecer o que é um pensamento avulso e o que é a voz de alguém que lhe chama. _explicou.
Ao tentar com ela, reconheci sua voz chamando em minha mente. No início soou fraca, quase inaudível. Mas quando lhe dei atenção, sua voz se tornou mais forte, se distinguindo claramente da caótica tagarelice mental. Com o passar dos dias, conversamos mais e mais, até que dominei complentamente a técnica. E, após dominá-la, Oanna me ensinou à manipular as mentes mais fracas, conforme minha própria vontade. Se antes já conseguia imobilizar animais, agora era capaz de comandar rebanhos, varas, alcatéias inteiras para que fizessem o que eu lhes ordenasse. Quanto às pessoas, somente as muito fortes de espírito, ou os iniciados, escapariam ao meu comando.
Por fim, ela ensinou-me a ir de um lugar para o outro num piscar de olhos. Na verdade, todos as almas desencarnadas fazem isso facilmente, apenas os amaldiçoados _meio mortos que são _têm de descobrir e aprender a usar tal poder. É óbvio que, ao dominar tal arte, decidi ir até Calidora. Porém, ao chegar em sua gruta, ela estava vazia. Todas as suas coisas se encontravam lá, mas não havia o menor sinal dela e das crianças. Seu perfume característico de rosas impregnava o ar, mas ela não estava nem no "quarto", nem no lago subterrâneo.
Em um piscar de olhos, fui até a estrada. Os salteadores _que não podiam me ver _estavam lá, mas nada de Calidora. Fui até o lago de Santa Ana... Nada!... Lembrei-me da encruzilhada onde encontrávamos os ciganos!... Encontrei apenas marcas de rodas de um carroção sobre o solo. Minha intuição me dizia que Calidora estivera ali, mas já não estava mais! Sentindo-me confusa, não conseguindo mais captar sua presença em lugar específico, retornei ao castelo. No quarto, Oanna me recebeu com um sorriso sarcástico nos lábios.
_Acho que sua amiguinha grega não está muito interessada em reencontrar você. _debochou.
_E eu não estou interessada em conversar com você! _respondi malcriada, saindo do quarto em seguida, batendo a porta.

TRAVESSURA




















Após vários passeios noturnos em forma de fumaça _nos quais não tive mais problemas com os demônios _Oanna começou a ensinar-me os poderes com o corpo mortal. Uma noite, quando todos já dormiam, ela levou-me para o pátio. Apontou-me então para o alto e disse:

_Olhe a janela de meu quarto, ali no alto.

Mirei a janela ao alto, depois olhei para Oanna, mexendo os ombros, querendo dizer "e daí!". Ela então sorriu maliciosamente e caminhou até a parede. Como o pátio estivesse bem iluminado pelas lanternas, assustei-me mais uma vez com o que vi. Como se fosse uma lagartixa, ela subiu as paredes do castelo, até seu quarto, com desenvoltura e rapidez. Sua camisola esvoaçava levemente, como se o vento a carregasse. Era fantasmagórico! Entrou então pela janela de seu quarto e acenou, me chamando.

_Venha! _dizia do alto.

_Como faço? _indaguei de baixo.

_Inspire e depois expire, imaginando uma força formar uma bolha em volta de seu corpo.

Fechei os olhos e fiz o que ela ordenou. Imediatamente senti uma força emanar de mim e envolver-me toda. Dei alguns passos e senti como se não pisasse no chão, muito embora visse meus pés sobre ele.

_Está sentindo a força? Venha! _encorajou Oanna sorrindo.

Resolutamente caminhei até a parede e, ao tocá-la, minhas mãos como que grudaram a força que as envolvia com uma força que emanava da própria parede. Movi meu braço e senti simplesmente esta redoma de força me puxar pra cima. Toquei com meu pé direito na parede e, com mais um movimento, literalmente fui subindo. Era simples, aquela força invisível fazia eu me grudar e deslocar-me deslizando sobre as superfícies, como se uma imensa teia a tudo cobrisse. Enquanto subia, o vento frio da noite de primavera entrava por minha camisola e a fazia esvoaçar. Rindo como uma criança que faz uma travessura, subi até a janela de Oanna. Ela puxou-me janela adentro, também rindo. Ficamos então feito duas meninas, olhando uma para a outra, às gargalhadas. Quando nos controlamos, ela disse:

_Agora olhe.

E simplesmente começou a descer janela abaixo. Seus cabelos se soltavam como que inflados pelo vento. Quando suas mãos tocaram o chão, ela deu uma pirueta e pôs-se de pé. Ri ao ver aquilo. Ela acenou pedindo para eu descer. Desci, sentindo a mesma teia de força me conduzir para baixo. Era engraçado sentir meus cabelos se inflarem, assim como minha camisola. Ao tocar o chão, fiz questão de dar uma boa pirueta.

_Uwuuuuuuuuhhhh!!! _brinquei, antes de pousar, bem em frente à Oanna.

Ela então segurou-me pelos braços e começou a rir. Rimos feito duas tolas, uma olhando a cara da outra. Ela então puxou-me e começamos a dançar, pulando e rodopiando. Nesta noite, escalamos paredes, muros, árvores, o que encontramos pela frente. Por fim, colhemos cerejas, comemos e jogamos conversa fora, até a aurora nos mandar para a cama.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

BRUMAS




















Sair do corpo não foi mais nenhum mistério, mas Oanna ainda tinha técnicas assustadoras para me ensinar. Quando cheguei ao portão, ela já me aguardava. Porém, me surpreendeu mais uma vez:
_Fique na forma mais densa possível!
Concentrei-me então, relaxei, expirei e meu corpo etéreo se tornou mais denso, visível. Oanna sorriu satisfeita e começou a lição daquela noite:
_Sei que o que verá não agradará muito, mas preste atenção!...
Ela então aproximou-se do grande portão de madeira, que estava fechado. Projetou sua mão em direção à fina fresta entre duas tábuas e... começou a penetrá-la!... Confesso que achei horrível ver aquilo pela primeira vez. A mão de Oanna parecia ser feita de pasta, sua carne se espremia sem sangrar, penetrando a fresta. Ela passou a mão toda e começou a passar o braço, a manga de seu vestido se encolhia horrivelmente. Achei aterrador e meu rosto se contraiu de horror. Ao ver meu mal estar Oanna riu. Ainda com o braço, até a metade, entre as tábuas, explicou:
_Sim, Irina, é horrível! Por isso que você deve fazê-lo! Isso assusta nossos oponentes!
Entendi sua lição, mas ainda a achava indigesta. Ela então me provocou e encorajou:
_Para quem foi o novo fantasma branco do Cheile você é melindrosa demais, Irina. Vamos, me acompanhe. Vou passar para o outro lado, se quiser ficar sozinha ai, fique!...
Como se fosse uma pasta sendo esmagada pelo rolo de massa, espremeu-se pela fresta e passou pouco a pouco para o outro lado. Não pude deixar de fechar os olhos quando vi seu rosto se deformar. Ao abrí-los, ela não estava mais diante de mim. De repente, ouvi sua voz, do outro lado:
_Você vem, ou não vem, Irina?
Sem alternativa, me sentindo provocada, enfiei minha mão entre a fresta das tábuas e comecei a atravessá-la. Vi que não era de forma alguma difícil, eu parecia feita de nuvem. A sensação era intrigante, sentia cada poro da madeira me fazendo estranhas cócegas. Comecei a passar o tronco sem sentir nenhuma dor, apenas a estranha sensação de minha carne se espalhando como se fosse a mais macia seda. Quando passei a cabeça, meus olhos se espalharam e pude ver cada poro da madeira. Por fim, meu rosto saiu do outro lado e pude ver Oanna rindo. Terminei de vazar pela fresta e esbravejei:
_Do que ri?!
_Agora sim, está feroz e aterrorizadora como deve ser uma vampira! _gozou.
_Vou acabar com você! _ameaçei.
_Não prefere acabar com eles?... _respondeu apontando para a floresta.
Olhei para a floresta e a vi estranhamente escurecida entre as árvores. Sua atmosfera estava realmente enegrecida.
_O que é isso, o que está escurecendo a floresta?
_Demônios, Irina! Cada parte escura que você vê... é um demônio.
Olhei para aquele imenso fundo escuro e senti como se muitos olhos me fitassem ameaçadoramente.
_Eles estão olhando para mim? _perguntei a Oanna, como uma criança medrosa.
_Você sabe que sim.
_Como posso passar por eles? _estremeci.
_Tem fé em algum deus?
Imediatamente lembrei-me da noite com Ivan e de como agradeci a Vênus por me redimir. Então respondi a Oanna:
_Tenho sim!
_Então vamos! _convidou me estendendo a mão.
Peguei em sua mão e ela instruiu:
_Agora inspire e depois expire... e dissolva seu corpo.
Fechei os olhos e fiz o que ela mandou. Senti meu corpo como que se dissipar, tornando-se cada vez mais leve. Senti que não definia mais se tinha pernas ou braços, muito embora, estivesse, de alguma forma, tocando o chão. Abri os olhos e vi apenas uma névoa vermelha, levemente rosada, à minha frente. Foi quando a voz de Oanna soou, um tanto etérea:
_O que você vê é seu corpo. Volte seu o foco de seu olhar para mim.
Senti como se meus olhos estivem soltos no ar e voltei-os em direção da voz dela. O que vi foi uma névoa vermelha acastanhada, que descia rumo à floresta, pairando sobre o chão.
_Vamos, Irina, me siga. _ordenou ela.
A segui. Simplesmente adentrei na floresta sentindo meu corpo tocar em tudo, árvores, folhas, insetos, o chão... Eles não me feriam, sentia-os me atravessarem, fazendo leves cócegas. Nos aproximamos do terrível fundo enegrecido e vozes ameaçadoras, masculinas e femininas, começaram a soar:
_O que quer aqui, Irina de Somlyó? Sua puta! Sua rameira! _inquiria uma voz masculina.
_Ela quer trepar! Ahahahaha!!! _zombou uma voz feminina, vulgar como de uma asquerosa rameira, velha e bêbada.
_Insetuosa! Insestuosa! _acusava outra voz masculina, muito abafada.
_Sua puta! Sua vadia! Matou sua mãe! Trepou com seu pai! Trepou com seu pai e matou sua mãe! _acusava uma feroz voz de megera.
Comecei a me sentir ofendida mas, adivinhando o que eu sentia, Oanna veio em meu socorro:
_Não dê ouvidos a eles, Irina. Mande-os calarem a boca e tenha fé.
As acusações aumentaram:
_Passeando com sua amante lesbiana, heim, Irina! Ahahahahaha!!! _provocou outra voz masculina.
_Ela uma puta lesbiana como a irmã, aquela freira devassa! _acusou a megera.
A fúria subiu-me à cabeça e vociferei:
_Não fale de minha irmã sua megera asquerosa!
Ouvi em resposta um imenso coro de gargalhadas. As vozes voltaram a insultar:
_A putinha ordinária ficou ofendida! _zombou a voz de velha bêbada.
_Não passa de uma rameira! _acusou a megera.
Minha ira atingiu o auge, mas fiz o que Oanna recomendou, tive fé! Imediatamente desferi meu ataque:
_Cale a boca sua megera, ou minha Mãe acabará com você! Aliás, com todos vocês! _ameaçei lembrando de Vênus.
O que aconteceu em seguida foi um dos espetáculos mais aterradores que presenciei em minha vida. Um imenso coro de gritos e urros pavorosos ecoou pela floresta. Uma ventania digna das piores tempestades surgiu de repente e revolveu a floresta como se quisesse varrê-la da face da Terra. O vento, com seus assobios assustadores, parecia então levar as vozes para longe. Percebi claramente que aqueles demônios malditos desciam de volta ao inferno. A medida que as vozes foram sumindo, o vento foi acalmando e, como num passe de mágica, a floresta tornou-se clara e serena, iluminada pela lua cheia.
_Muito bem, Irina! Venceu sua primeira batalha! _elogiu Oanna.
Apenas sorri em resposta. Ela então ensinou:
_Acho que agora podemos nos transformar em filetes, ao invés de sermos estas brumas tão bizarras. Inspire e sentirá seu corpo se reduzir.
Obedeci e realmente senti-me reduzir ao ponto de me transformar em uma fina serpente de fumaça. Olhei para o lado e vi Oanna na mesma forma. Ela então convidou:
_Agora vamos passear tranquilas, apenas spiridus e doces almas penadas nos esperam pela frente.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

YARILO



















Uma noite perguntei à Oanna:
_Existe alguma redenção, ou alguma remissão para nós, vampiros?
_Sim. _respondeu ela imediatamente.
_Mas como, se atentamos contra as leis de Deus? E eu, por sinal, o reneguei!
_Renegou ao Deus cristão, mas será que só ele existe?
Este argumento me fez silenciar e pensar. Ela prosseguiu:
_Toda vez que preciso de proteção, peço ao único deus que me aceitou: Yarilo.
_Nunca ouvi falar nele.
_Minha avó contava antigas lendas em que ele aparecia. Ele é o deus da sensualidade para os antigos povos que abitavam aqui, por isso foi o único a aceitar minha súplica.
_Você o viu... no reino dos mortos?
_Uma única vez. Uma noite, eu me encontrava em estado tão miserável em minha antiga caverna, que clamei por qualquer força que por mim se compadecesse. Era um inverno terrível! Nenhum viajante se aventurava pelas estradas, nenhuma tropa marchava em tão maus dias. Até mesmo os animais estavam escassos. Chegou ao ponto de eu ter de me contentar com as raras baratas e morcegos que eu encontrava. Uma noite, quando perdi uma barata, que talvez fosse minha única refeição naquele triste dia, cai de joelhos e clamei por qualquer deus que escutasse minha amaldiçoada alma. Curvei-me e baixei minha cabeça no chão, chorando. Foi quando ouvi o ruído nítido de um rato. Ergui a cabeça e lá estava ele, grande e gordo. Tomada pela fome, consegui encantá-lo e paralisá-lo. Tomei-o então nas mãos e o comi plena de gratidão. Logo em seguida desfaleci. Desci então ao mundo dos mortos e me vi em uma clareira, diante de um jovem lindo, luminoso. Tinha cabelos compridos e dourados, seus olhos eram de um azul indescritível, eram como pedras preciosas. Usava roupas como as de um príncipe, douradas e reluzentes, como seus cabelos e barba. Ele estava sentado em uma soberba cadeira de madeira entalhada, que lhe servia de trono. Ela olhou sereno para mim e disse com sua voz máscula, mas meiga:
_Espero que tenha gostado do presente que lhe enviei.
Lembrei-me imediatamente do rato, corri, me curvei, de joelhos, diante dele e comecei a chorar e agradecer.
_Obrigado! Obrigado, senhor! Obrigado!...
_Não chore, Oanna! _disse ele. Eu pude sentir sua mão tocando gentilmente minha cabeça. Ele então falou, enquanto eu soluçava _Eu sempre estive ao seu lado, embora não me conhecesse. Você sempre aceitou minha oferenda, muito embora lhe ensinassem que ela é algo abominável.
Ao ouvi-lo falar assim, ergui minha cabeça e o fitei sem entender. Ele então me explicou:
_Você sempre amou o prazer, sempre. Nunca rejeitou minha oferenda. Por isso eu estou aqui, ao seu lado... como sempre estive.
O entendi prontamente e baixei minha cabeça chorando. Agarrei-me então aos seus pés e banhei suas belíssimas botas com minha lágrimas. Ele então me disse:
_Você não chorará mais de fome, Oanna, nunca mais! Sempre que precisar, chame por mim: Yarilo!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

SOPRO



















Após o vôo da tarde, confesso que fiquei menos armada contra Oanna. Ela então ensinou-me os poderes mais tenebrosos.
_Podemos aparecer com nosso corpo etéreo para quem desejarmos e nenhuma arma, seja branca, ou de fogo, nos afetará.
_Então seremos invulneráveis nesta forma! _empolguei-me.
_Não, ainda estamos à mercê dos amuletos sagrados, desde que haja verdadeira fé em quem os manipula. Não importa que sejam crucifixos, bíblias, ou amuletos pagãos.
_Estamos a salvo do alho?...
_Também não, pois ele age em nosso corpo espiritual. Seu efeito no corpo mortal e mera externalização do que está acontecendo no corpo interior.
_Então mesmo em forma fantasmagórica temos fraquezas? _inquiri.
_Sim, mas nossos poderes são muitos ampliados. Como temos o corpo etéreo meio solto, por sermos meio mortas, podemos realizar coisas que os pobres mortais só conseguem a custo de anos de estudo da magia. Da mesma forma que nos transformamos em pássaros e voamos hoje à tarde, podemos nos transformar em animais ferozes. Nossa força física, em forma etérea, pode ser muito ampliada. Muito mais do que já a temos devido ao consumo de sangue e fluidos corporais de outras pessoas. Aliás, sob a forma espiritual, podemos sugar diretamente o sopro vital de uma pessoa. Os vampiros demoníacos adoram atacar desta forma, invadindo alcovas, tendo horas de prazer carnal e sugando o máximo de sopro de suas vítimas. Em verdade, eles se alimentam assim a maior parte do tempo, pois têm de se esconder de seus perseguidores. Só procuram sangue, ou carne, quando sentem que seus corpos precisam de força nos músculos.
_Então é por isso que não mais encontrei as pornae!
_Que menina inteligente! _caçoou, em seguida proseguiu:
_Também podemos adentrar em qualquer espaço, penetrar por frestas onde nem uma faca afiada passaria. Não há portas fechadas para nós, nem muros, nem fossos, nem cadeias.
_E como podemos manter nosso corpo mortal a salvo?
_Em primeiro lugar, temos de ter a prudência de ter sempre um bom esconderijo. Porque acha que prefiro viver neste castelo? Em segundo lugar, você tem de treinar seu sexto sentido, a intuição. Assim, você saberá se algum perigo se aproxima de seu corpo. Poderá então retornar a ele imediatamente. Basta que concentre seu pensamento nele e, quando abrir os olhos, acordará encarnada.
_Podemos ser atacados por outros espíritos na forma espiritual?
_Sim, por isso cabe a você treinar seus poderes. Você mesma viu como Drácula poderia tê-la destruído. E veja que ele é apenas o espectro de homem desencarnado. Porém há demônios muito mais poderosos. Eles tomam a forma que quiserem e são sempre muito assustadores. Mas sua forma de agir é exatamente a mesma que a nossa, portanto, quanto mais conhecimentos você tiver, menos eles poderão contra você e até mesmo temerão você.
_Mas podemos matá-los?
_De fato não. Matar um demônio é algo que só a força misteriosa que move o cosmo, seja o Deus cristão, ou não, pode fazer. Mas não precisamos matá-los, basta que os mandemos de volta para o inferno.