segunda-feira, 30 de julho de 2012

TEMPESTADE


Santuário em Csiksomlyó (antiga Somlyó), no local onde os székelys venceram as tropas de János Sigismond, no dia de Pentecostes de 1567.


Ao amanhacer, nossos homens tiveram de limpar a frente do castelo com panos protegendo-lhes as narinas, pois o odor dos corpos era de uma podridão indescritível. Mesmo aqueles que estavam calcinados até os ossos, exalavam um fartum ácido, que parecia vir do próprio inferno. Aquele foi um sábado que começou cheirando à morte! Todos os corpos foram enterrados em uma grande vala e encobertos com cal.
Embora o sol da primavera estivesse forte aquela manhã, permaneci fora, ao lado de Mika e dos homens. Protegi-me sob uma capa, mantendo o rosto sempre debaixo do capuz, para que a claridade não me incomodasse tanto. O calor ruborizou minhas mãos, mas apenas Mika notou isso.
Enquanto limpavam a praça de combate da noite anterior, um jovem cavaleiro székely chegou a cavalo, a todo galope. Sem fazer rodeios, anunciou:
_Preparem as tropas, o exército do príncipe está a caminho! São muitos homens! Já estão a menos de um dia de viagem daqui! _anuncia o ofegante rapaz.
Mal terminou de ouví-lo, Mika não pensou duas vezes, determinou:
_As mulheres e as crianças devem permanecer no mosteiro! Deixaremos alguns homens lá. Todas as mulheres que forem mais graúdas em tamanho devem permanecer armadas, de guarda nas janelas. Se os soldados do príncipe entrarem, a ordem é que os ataquem com o que tiverem nas mãos, com dentes e unhas se for necessário. Em caso de desvantagem, não devem exitar em incendiar tudo!... Quanto a nós, devemos nos reunir no campo ao pé do morro! Parte de nosso contingente deve permanecer escondido na floresta, atrás, e só atacar após o início da batalha, como reforço! Irina, você ficará no comando desta tropa.
_Sim! _lhe respondi prontamente.
Neste momento, Marton apareceu com um pequeno exército de cerca de quarenta aldeões que vinha em fila. Mikca olhou para a tropa com surpresa e Marton lhe explicou:
_Eles querem lutar.
Antes que Mika respondesse o que quer que fosse, um dos aldeões, magro e de músculos rijos, como um bode, se adiantou:
_Senhor, nos deixe lutar! Seu exército precisa de reforços. Somos fortes e temos nossos facões e foices como armas.
_Mas e suas famílias? _questionou Mika.
_Tenho duas filhas em idade de casar e não quero vê-las estupradas pelos infiéis. _explicou o aldeão. _Por isso, senhor, lhe suplico!...
Sentindo firmeza em seu pedido, Mika assentiu com a cabeça. Voltou-se então para Marton e disse:
_Ainda sobraram alguns mosquetes, dê a eles!
Marton assentiu e Mika voltou-se para mim:
_Irina, você fica com eles na floresta.
Assenti com a cabeça. Porém, ao ouvirem meu nome, alguns aldeões se sobressaltaram, olhando para mim com desconfiança e temor. Percebendo sua reação temerosa, o líder de músculos de bode os censurou:
_Deixem de asneiras! Preferem morrer nas mãos dos infiéis?!...Virarei um vampiro hoje, se isto for necessário para salvar minha família!...
Desconcertados, eles se baixaram o olhar. Mika, no entanto, com este incidente, teve um lampejo. Voltou-se para mim e disse-me ao ouvido.
_Pensando bem, é melhor você se disfarçar de homem. Acho que os soldados de Sigismond estão loucos para pegar você. Se eles verem uma mulher no campo de batalha, saberão que é você.
Assenti a cabeça positivamente, concordando. Ele continuou:
_Lhe arranjarei um traje, fique tranquila. Ah!... E não solte os cabelos.
Ri levemente em resposta, com o último conselho.
Neste momento, inusitadamente, frei Emil surgiu com o abade, frei György, mais dois noviços. Estavam todos paramentados para a missa e carregavam o cálice e o cibório, ambos devidamente cobertos pelos sanguíneos. Vendo que não me assustava, os aldeões pareceram se acalmar.
A pequena comitiva eclesiástica parou diante dos soldados e estes, percebendo que iria se realizar um evento religioso, se ajoelharam prontamente, sem que fosse preciso o abade pedir. Apenas eu permaneci de pé. Olhei então para frei Emil por um instante e me retirei. Ele baixou o olhar em resposta, compreendendo minha atitude, porém sem aceitá-la em seu coração. Mika contou-me o que aconteceu depois.
Uma vez que todos os fiéis estavam prontos, frei György começou:
_Queridos irmãos, vim aqui apenas para lhes lembrar que hoje é o dia de Pentecostes. O dia em que o Senhor enviou seu Espírito aos apóstolos e estes realizaram grandes prodígios. Peço então ao Espírito de Deus que vos ilumine e conceda poder para lutar contra nosso obstinado inimigo, assim como concedeu força sobre humana a Sansão e destreza a Davi, quando este teve de lutar contra Golias. Quero agora que peçam perdão por seus pecados em seu coração...
Os homens baixaram a cabeça e, de joelhos, balbuciaram seu pedido de perdão, ou simplesmente o fizeram em seus corações. Frei György então concluiu:
_Senhor Deus, peço que nos conceda força e perseverança neste momento tão crucial e que nossa Santa Mãe interceda por nós em nome de teu Filho, in nomine patris, et filii, et espiritus sancti. Amen!
Todos fizeram o sinal da cruz em resposta. Uma fila então se fez em frente a frei György e este deu início à comunhão.
Enquanto a cerimônia seguia, experimentava as roupas que Nándor me emprestara. Apenas a camisa me serviu, as calças ficaram muito apertadas, por conta de meus quadris mais largos. Nándor era alto, mas um tanto magro. Mais uma vez acabei ficando à moda dos dácios. Só que desta vez, tive o cuidado de improvisar uma calça curta por debaixo da camisa. A confeccionei recortando a parte dos quadris de uma velha calça do rechonchudo Szabolcs. Ela me cobria somente a partir do alto da dobra das coxas, deixando os movimentos de minhas pernas livres e protegendo minhas vergonhas, ao mesmo tempo. Pus então a capa, baixei o capuz e voltei para o meio dos homens.
Mal o piedoso evento teve fim, nosso olheiro aparece a todo galope:
_Preparem-se, eles estão vindo!...
Já montada em Agathon, surgi entre meus homens e os chamei:
_Vamos! Para a floresta!
Eles obedeceram sem pestanejar. E diria mesmo que me seguiriam até o inferno, tanto que olhavam para as minhas pernas. Nos escondemos à sombra dos pinheiros. Pedi a Dionísio, em meu coração, que a sombra nos ocultasse o suficiênte. Roguei também à Mãe Vênus que me concedesse um céu sombrio, para que eu também pudesse lutar. Os homens de Mika se organizaram no campo. Estavam prontos para matar e morrer. Haviam enfrentado demônios na noite anterior, por isso não temiam mais nada!
Em meu canto, montei em Agathon e preparei-me. Meu príncipe árabe relinchava, já excitado para sair a galope. Mas eu o continha:
_Calma, meu príncipe, calma!... _sussurrava em seu ouvido, acariciando seu rosto e penteando sua crina com os dedos.
Vi o imenso exército de Sigismond surgir no horizonte, como uma inundação! Estava descansado e bem armado, ao contrário do nosso. Mesmo assim, nossa infantaria aguardava o inimigo de mosquete em riste, disposta a matar, ou morrer!... Gritando furiosa, a infantaria do príncipe subiu em direção aos székelys. Nossos homens esperaram até que se aproximassem o suficiente. Quando puderam olhar nos olhos do inimigo, dispararam a primeira leva de tiros. Os primeiros corpos caíram sem vida, rolando morro abaixo.
Enquanto nossa ala de frente recarregava seus rifles, a segunda já se erguia e disparava. Os soldados do príncipe, no entanto, eram como o fogo, avançando morro acima como se a grama e a terra os alimentasse. Nossos primeiros mortos caíram em meio a disparos, manchando o verde da grama com o vermelho de seu sangue. Uma sucessão de disparos se seguiu, com corpos tombando de ambos os lados, feridos, ou mortos. A infantaria do príncipe parecia brotar do chão. Quando não convinha mais gastar munição e o choque entre as tropas mostrou-se inevitável, as espadas foram desembainhadas. Os homens se engalfinharam!... Ouviu-se gritos e ranger de dentes!
A cavalaria de Sigismond então aproveitou para mostrar sua força. A todo galope, subiu e se lançou contra nossa infantaria. Já preparado, Mihail deu ordem a nossos cavaleiros:
_Atacar!
Gritando, nossos cavaleiros desceram sobre o inimigo como vespas! A confusão mortífera da batalha se fez presente. Meus homens já se impacientavam para entrar em combate.
_Senhora, deixe-nos ir! _suplicava o aldeão líder.
Eu simplesmente lhe respondia:
_Calma! Se entrarmos muito adiantados, atrapalharemos os homens de Mihail!
Isto era um fato, mas meu coração agonizava por não ver uma única sombra encobrir o sol. Na batalha, não conseguiria me encobrir o tempo todo com a capa. No campo, para meu desespero, os homens de Mika começavam a cair em desvantagem, frente ao grande número de soldados inimigos. Neste momento crucial, Vênus me concedeu sua graça!... Nuvens sombrias carregadas surgiram e um céu escuro e tempestuoso se formou. Dei um beijo no rosto de Agathon e lhe sussurrei no ouvido:
_Vamos lá, meu menino, é hora de entrarmos na festa!...
Com um grito, dei ordem para meu exército partir:
_Atacar!
Meu belo príncipe partiu a todo galope, meus homens nos seguiram, gritando furiosos! Surgimos da floresta como assombrações. Como que desobedecendo o conselho de Mika, com a velocidade do galope, meu capuz descobriu minha cabeça. Sentindo o vento tempestuoso em meus cabelos, desembainhei minha espada. Como uma tempestade, meu exército adentrou na batalha. Os soldados de Sigismond se assustaram com nossa chegada. Seus capitães arregalaram os olhos! Como vampiros famintos de sangue e carne, meus guerreiros começaram a matar. Vendo-os cair sem medo sobre os soldados do príncipe, lembrei-me mesmo dos lobos, durante os ataques às tropas de reforço.
Por meu turno, com minha espada, rasguei o rosto do primeiro incauto. O segundo recebeu uma estocada entre as costelas, no lado esquerdo. O terceiro teve a garganta aberta. O quarto veio a todo galope, por trás, pronto para descer sua espada e me partir a cabeça ao meio. Mas senti sua chegada e puxei minha adaga direita, que cravou-se em seu coração. Sem pestanejar, tomei minha pistola, voltei-me para frente, e estourei os miolos do cavaleiro que já se lançava à dez pés de distância. Guardei então a pistola e chamei de volta minha adaga, que derrubou o corpo do cavaleiro ao se desencravar de seu peito.
Não demorou para que o espaço à minha volta se abrisse. Pois o que o inimigo via à sua frente era uma assustadora vampira ruiva, com os olhos mais vermelhos que os próprios cabelos e as presas prontas para se banhar em sangue. Não pude evitar, quando enfurecida, minha natureza feroz se mostra. Para a infelicidade de Mika, não dava para esconder quem eu era. Eu era a odiada e aterradora Irina, o flagelo do exército de János Sigismond!...
Como balas caindo do céu, senti os pingos de água me acertarem direto na cabeça e nas costas. A tempestade finalmente desabou!... O mundo rugia! O sangue escorria sobre o chão como se fosse um rio. Durante um tempo que pareceu interminável, a fúria da guerra se fez presente. Os homens se batiam, fosse de pé, fosse deitados. Lembrei-me das almas danadas, que se contorciam no rio do inferno, na Comédia de Dante. Foi quando percebi que a batalha "escorria" morro abaixo. "_Não acredito!... Eles estão recuando!...", pensei comigo.
 E de fato, tão logo a chuva abrandou, ouvimos os gritos do comandante inimigo:
_Recuar! Recuar!...
Era inacreditável!... O imenso exército de Sigismond batia em retirada! Reduzido que estava a poucos sobreviventes, que agora fugiam assustados. Aos gritos, nossos homens festejaram. Ensopada dos pés à cabeça, suja de sangue e lama, também ergui a espada... e gritei!...

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